segunda-feira, 29 de junho de 2015

São Pedro...Uma crônica carioca de todos os tempos...

  
SÃO PEDRO (A festa dos pescadores)

de Alexandre de Melo Morais Filho ( 1844-1919),
 poeta, prosador e historiógrafo brasileiro

 Barco da procissão marítima nos dias atuais


"século XIX


Das tradições populares do Brasil ignoramos se alguma existe escrita que represente o nosso povo no trabalho da navegação e da pesca, na luta com a imensidade dos mares, já irritados pelos temporais, já intumescendo as tetas ornadas de brilhantes, como virgens mortas boiando ao alarido das ventanias.

Entretanto, essa classe social, esses audazes pescadores, de costumes austeros como os anacoretas, tiveram lides supremas e fadigas assombrosas; os alentos da fé nos azares e nos perigos; a vela acesa ao padroeiro de sua devoção pela esposa que o vira partir, quando a Estrela dos Mares recolhe a prece do marinheiro que a evoca nas solidões das águas do oceano.

Embora perfazendo grupos sem representantes na nossa musa popular, os pescadores do Rio de Janeiro celebravam a festa anual de São Pedro, o santo protetor da suas embarcações e pescarias.

E ao seu poder acreditavam dever a vida tantas vezes disputada contra as tempestades, e a miríade de peixes trazidos às praias e dispostos sobre as areias como grinaldas de flores.

Há perto de cinqüenta anos, quando a praia da ponta do Caju, a Gamboa, a praia dos Lázaros, a praia Formosa e a do saco do Alferes não haviam ainda perdido a sua configuração primitiva; quando de longe em longe, uma ou outra casa se destacava por entre as muitas casinhas de pescadores; a véspera de São Pedro transformava aquele litoral em alguma coisa de pitoresco e fantástico, desde a hora do crepúsculo, em que o sol, abatendo-se nos mares, sacode arquejante nas águas as cinzas turvas de suas asas.
Por aqueles tempos a pesca, nas indicadas paragens e barra fora, era feita por escravos africanos, pertencentes a Gabriel Pinto de Almeida, a Gabriel Pequeno, ao Brum, a João de Mure e diversos proprietários de canoas de voga, e baleeiras, existindo conjuntamente pescadores brancos e mestiços livres, que habitavam na redondeza.

Para a festa, os pescadores negros preparavam vestimentas e instrumentos músicos das suas nações, e os demais fabricavam enorme quantidade de fogos para os combates navais que se empenhavam entre os partidos, durante horas, entrando sempre pela madrugada.

Na manhã da véspera do santo, as canoas começam a abicar na areia, os negros fincavam mastros com bonecas, enfeitados de tangerinas, laranjas e outras frutas, demarcando limites às canoas de seus senhores. Desde a praia do Caju até a do Saco do Alferes viam-se homens, mulheres e meninos guarnecendo de velas em bolas de barro as bordas das embarcações alinhadas; escaziando laranjas e fazendo cartuchos de papel para servir-lhes de manga de vidro; embandeirando os barcos a capricho, ufanos e conscientes de sua perícia.

Abertas e francas, lá estavam as casas dos pescadores, abastecidas do melhor peixe e da boa pinga, distinguindo-se, suspensos às paredes ou sobre tamboretes, os munzoás, as redes, os espinhéis e mais utensílios de pesca, notando-se igualmente em quase todas a pequena imagem de São Pedro em seu trono, armado e florido, com lamparina ou velas acesas.

Em toda a extensão das praias, cabeças de alcatrão e barricas de lenha ficavam colocadas pelos escravos, que, aqui e ali, vestidos de reis, de rainhas e de feiticeiros bárbaros, tocavam urucungos, caixas de guerra e marimbas, cantando e dançando, com permissão dos senhores.
O povo da cidade afluía incessante aos diferentes pontos; os tocadores de serenatas afinavam os violões e cavaquinhos ao tom das flautas; e, logo que caía a noite, as iluminações e as fogueiras congregavam as turmas festivas, que cantavam e dançavam, dando vivas à função e a São Pedro.

As famílias, sentadas em tamboretes e em cadeiras, fora das casas, reuniam em cada porta alegres vizinhos, que trocavam entre si convites para as magníficas ceias de peixe, de lagostas e de camarões, pescados para o dia.

E, desde o escurecer, os botes, as chalanas e as canoas, orlando as praias de colares de luzes, desenrolavam por todo o litoral uma cinta de rubis acesos, que refletiam-se oblíquos na areia, como cristais de sangue.

E os jongos dos negros confundiam-se com o marulho das vagas, que bipartiam-se em cabeleiras de ouro, às luzes das lanternas das embarcações, suspensas aos estaes, passados de umas a outras.

Embora o espírito religioso dos pescadores e das famílias colocasse nas suas pobres habitações a imagem do apóstolo que comemoravam, era na casa do festeiro que São Pedro recebia o culto dos mareantes e da população em alegre romaria às marinhas da cidade.

Acesas as fogueiras, aos arpejos dos violões e ao canto das modinhas, os barcos flutuantes e as canoas avivavam mais o aparatoso efeito no escuro da noite, rompendo do mar o combate a chuveiros, bombas, roqueiras, busca-pés, foguetões e pistolas, cujos tiros apagavam-se nas vagas como flores candentes, ao granizo de fogo que tapetava o leito movediço dos barcos.

Fundeadas em poitas a justa-mar, amarradas a fateixas que unhavam as pedras, oscilavam em torno das ilhas próximas as canoas de voga, esvoaçando n’água, quais borboletas douradas, os clarões rubros das velas que as iluminavam em torno.

E aqui, ali, mais longe, levemente açoitados pelas ondas, frágeis bateis balouçavam presos em amarras aos rochedos, encostados os remos às frestas das penedias.

O que se passava no Retiro Saudoso, na praia do Caju, no saco do Alferes, na praia Formosa e na Gamboa reproduzia-se com iguais estilos na ilha do Governador, em Guaratiba, na Jurujuba, etc., mares piscosos e localidades habitadas por essa classe do nosso povo.

Começando de véspera e prolongando-se até a manhã seguinte do dia de São Pedro, essa festa, outrora popular, distinguia-se da de São João, apenas pelo maravilhoso cenário e os indivíduos especiais que nela tomavam parte, havendo igualmente consultas ao destino por meio de sortes, carás, batatas, milhos e canas assadas nas brasas das fogueiras que em labaredas contornavam as marinhas.

Na ilha do Governador, a festa de São Pedro era abrilhantada com as cavalhadas, com torneios em que os justadores furavam com as lanças panelas de barro cheias de marimbondos, tiravam a argolinha, levando as fitas ganhas às namoradas, que os aplaudiam, disfarçadas, escondendo, o sorriso no canto do lenço.

Nas citadas praias, a tradição recorda unicamente o que descrevemos em traços gerais, constituindo-se mais tarde comissões para continuar a obra do passado que desfalecia.

Há mais de vinte e cinco anos, ao que nos consta, a festa dos pescadores se foi despovoando, não havendo mais as alegrias inocentes de outros tempos. Com a concessão de marinhas e desaparição dos escravos, a pescaria mudou de sua fisionomia original, e em vão se fatigará o olhar procurando as antigas casinhas dos pescadores, naqueles lugares, onde só o mar ficou, porém recuado em suas águas perdendo de suas praias as linhas primitivas.

Com o fim de não se extinguir de todo o pensamento religioso, em épocas mais recentes, distintos moradores do Retiro Saudoso e do Caju reuniram-se para reerguer o tradicional festejo, exuberante de poesia e de jubilosa espontaneidade.

Embora sem a mágica perspectiva dos antigos dias, sem as pompas exteriores da tradição, a festa dos pescadores celebrava-se aos raros fogos do mar e de terra, com relevo delicado e próprio.

Devido à poderosa influência do ilustre doutor João de Castro, essa tradição popular aspirou o renascimento, associando-se a gente do lugar e os pescadores da praia do Caju a renovar-lhe o mareado esplendor.

Então, da casa do benemérito cidadão, e depois do Asilo da Velhice Desamparada, saía a procissão de São Pedro, que vinha até a igrejinha, percorrendo no trânsito ruas adornadas de arcos de folhagens, embandeiradas, tapetadas de flores, ouvindo-se uma banda militar em amplo coreto.

Quer no Asilo, quer na capela particular do organizador da festa, a milagrosa imagem achava-se de véspera sobre lindo altar, avistando-se à direita da entrada vistosa canoinha de pouco mais de um metro, tendo no centro uma espécie de trono e dos lados dois remos sobre os quais descansava.

Destinada a ser conduzida procissionalmente, sobre o singular andor colocavam São Pedro, que ao entardecer já se achava na 
procissionalmente
rua.

E a canoinha, levada ao ombro por moças vestidas de branco, de colarinhos e punhos à marinheira, seguia o seu itinerário, ao som da música e ao estampido dos foguetes, tendo por especial préstito incultos pescadores e rudes mareantes, com os seus trajes próprios e os seus instrumentos de trabalho.

Um ano houve em que a capela foi erigida ao ar livre, lá mesmo para as bandas do Retiro Saudoso, armada com velas e vergas de navios, adornada de emblemas sagrados e de utensílios de pescaria; profusamente iluminada, essa original construção abrigava a imagem ao recolher, e os devotos que iam depor sobre a salva de prata a esmola para o culto.

Não faltavam por essa ocasião as serenatas e comezainas, os rasgados de viola, fogueiras e acessórios, terminando a festança por enfumaçado fogo de artifício, obrigado às fortalezas e fragata, que precediam a última peça, o painel de São Pedro, emoldurado de luzes azuladas e trêmulas, que se derretiam, gotejando no chão.

E como cintas de fogo, as canoas iluminadas contornavam as ilhas e as praias, distinguindo-se em meio do mar as lanternas das embarcações, que se apagavam uma a uma nos nevoeiros do amanhecer."
       

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