Difícil encontrar um endereço no Rio que tenha sido morada de tantas figuras ilustres como a Rua do Riachuelo, na Lapa. Além de Capitu, a personagem mais famosa de Machado de Assis, que “viveu” por lá durante o Segundo Reinado, habitaram a antiga Rua de Matacavalos o abolicionista José do Patrocínio (em cujo casarão viria a nascer mais tarde o pintor Di Cavalcanti), o maestro Heitor Villa-Lobos, o escritor Olavo Bilac, o cantor Alves e os compositores Heitor dos Prazeres, Sinhô, João Pernambuco, Donga e Pixinguinha.
Disputadíssima desde a vinda da Família Real por ser uma das principais “vias secas” de ligação com a Zona Norte, a Rua do Riachuelo, uma das mais antigas saídas da cidade — sua trilha já existia em 1573 — foi alijada do frenesi imobiliário que tomou a cidade ao longo do século XX. Hoje recolheu-se à função de escoar trânsito para o Centro e perdeu, com a Lapa, muito do charme de outrora e é um dos pilares do processo de revitalização do Centro.
Dois novos empreendimentos comerciais prometem levar grandes empresas à região a partir do ano que vem. Com 12 mil metros quadrados, o Edifício Europa, onde funcionava o jornal “O Dia”, foi vendido a um fundo imobiliário alemão por R$ 30 milhões. Depois de uma reforma orçada em R$ 80 milhões, vai virar um centro comercial.
Na esquina da Riachuelo com a Rua Henrique Valadares, outra investida do grupo: um imóvel antigo acaba de ser vendido por R$ 15 milhões e também será destinado a escritórios.
- Como a rua é cheia de casarões velhos com problemas de documentação, quando aparece um imóvel em dia é uma preciosidade - atesta o administrador Cláudio Castro, da Sérgio Castro Imóveis, em via de fechar um terceiro negócio. — Temos uma demanda enorme de espaço comercial nesta rua. O que aparece, é vendido na hora.
Além dos dois edifícios comerciais, a administradora intermediou a compra de um terreno de 500 metros quadrados que vai se transformar em mais um condomínio residencial, algo impensável anos atrás. A administradora Schipper Engenharia segue o fluxo. Depois do sucesso que foi o Viva Lapa, condomínio residencial lançado em 2007, a empresa já fez terreno, literalmente, para construir o Viva Lapa 2, na Rua do Riachuelo.
- Comprei o primeiro apartamento aqui para investir, mas não resisti e vim morar. Não saio daqui por nada. E já trouxe meu pai também - conta o velejador e empresário Gustavo Machado, de 27 anos, que há seis meses trocou uma vida toda na Urca por quatro apartamentos no Cores da Lapa, empreendimento pioneiro nesse processo de retomada do Centro pelos moradores.
- Antes, qualidade de vida era morar perto da praia. Hoje é morar perto do trabalho — defende o subprefeito do Centro, Thiago Barcellos, que diz “travar uma batalha diária com a Comlurb” para melhorar a coleta de lixo na região. - Este ano, criamos a Corrida do Rio Antigo com este objetivo: fazer com que as pessoas conheçam de perto as ruas pelas quais só passam de carro, como a Riachuelo.
Esquentando tamborins
Na lista do que está mudando a cara da Riachuelo, sobra confete até para o carnaval.
O antigo casarão onde funcionou uma escola no século XIX, na altura do número 13, de propriedade da prefeitura, foi cedido por cinco anos à Sebastiana (Associação Independente dos Blocos da Zona Sul, Santa Teresa e Centro, da qual fazem parte 12 blocos, entre eles o Escravos da Mauá e o Simpatia É Quase Amor). A entidade já começou a reformá-lo para abrigar ali a Casa de Sebastiana, um centro de memória do carnaval de rua. Com três andares, o imóvel receberá o acervo iconográfico dos principais blocos da cidade, além de shows e oficinas de instrumentos musicais. A inauguração está prevista para o carnaval de 2013.
- Somos a memória viva da retomada do carnaval de rua. Se não começarmos a organizar este acervo já, perderemos muita coisa - diz Rita Fernandes, presidente da Sebastiana. - A Lapa é o coração dessa história. A casa vai ser o ponto de encontro dos blocos no carnaval.
Basta uma volta na Riachuelo para notar a transformação por que vem passando.
Ali onde ela começa, nos Arcos da Lapa, em vez dos mendigos que costumavam rondar a filantrópica Fundação São Martinho, o que se vê, agora, são pedreiros em atividade. Na altura do número 15, uma nova casa de shows está em construção. Ainda sem nome, terá quatro andares e uma réplica dos arcos ao lado do palco. Mais à frente, no número 126, outro casarão dará lugar a uma padaria até o fim deste mês. No 129, pertinho do bar onde Grande Othelo era sempre visto tomando um quente, uma placa anuncia um “megaestacionamento” em breve (já são 13 em toda a extensão da rua). “Em breve” é expressão corriqueira nas esquinas. Fechada há dez anos, a antiga sede da Cedae, no número 287, um belíssimo imóvel do início do século XIX que já abrigou o Arquivo Público do Rio, será recuperado “em breve” por uma parceria com o Inepac.
Outra particularidade é o surpreendente volume de ciclistas. Por volta das 7h, antes do tráfego pesado de carros e ônibus tomar a via, são eles que predominam. E estudantes, em bandos, além das muitas donas de casa esperando os supermercados abrirem as portas. Enquanto a equipe da Revista O GLOBO caminha pela rua, uma mulher observa da janela do apartamento o do fotógrafo pelo edifício em que ela vive, o de número 32.
— Todo dia vem gente aqui perguntando se tem apartamento para alugar — diz Jurema Duarte, de 58 anos, depois de convidar a equipe a entrar no suntuoso Edifício Victor, onde vive há 16 anos.
Peculiaridades pelo caminho
Quem bate à porta do Victor, admirado pelo estilo art déco, talvez nem suspeite de que ali está guardado um dos segredos da rua: ao construir o prédio para ser um hotel nos anos 30, o proprietário espanhol quis homenagear os alemães, hóspedes frequentes, e mandou incrustar no piso mosaicos com suásticas. O revestimento do chão está lá até hoje, e virou uma espécie de atração bizarra do local.
— Sempre achei estranho cozinhar olhando praquilo, mas a gente acaba se acostumando — comenta Jurema.
Seguindo o percurso, chama a atenção diversidade de entidades e estabelecimentos comerciais. Numa sorveteria, é possível tirar fotocópias. Numa loja de rações de animais, recarrega-se aparelhos de celular. É na Rua do Riachuelo que funcionam a Associação de Taquígrafos do Rio, a União Beneficente de Chauffers do Estado (onde todo mês ocorre uma seresta concorridíssima), a Comunidade Cristã de Assistência aos Surdos e a Fraternidade Fiat Lux (que se define “uma associação mística espiritualista eclética”).
— Cada dia descubro uma coisa nova nesta rua. Nunca pensei em morar aqui, mas achei este apartamento, o preço estava bom, decidi arriscar. Se não fosse o lixo, eu diria que é um lugar perfeito — diz a professora de balé Viviane Soares, $30 anos, que mora há um ano na Riachuelo com a Gomes Freire, na mesma esquina em que o escritor mineiro Pedro Nava pediu que fossem jogadas suas cinzas quando morresse, tamanho apreço pelo local (o desejo foi revelado em 1978, na autobiografia “Beira-Mar”).
A lista de curiosidades vai além. A rua tem ainda um time de futebol próprio, o Gaviões da Riachuelo Futebol Clube, fundado pelo taxista Luiz Passarinho, que reúne seus 13 integrantes todas as terças-feiras, no Aterro do Flamengo. E até um bloco de carnaval, o Dragões da Riachuelo, cuja marca registrada nos desfiles — pela rua, claro — são os 12 centuriões à frente da bateria, representando, cada um, um signo do zodíaco.
Uma das mais antigas ruas da cidade
A Rua do Riachuelo era usada como rotas de tribos indígenas no século XVI, contornando o Morro do Desterro, em Santa Teresa, até a Aldeia de Martim Afonso, o Arariboia. De acordo com o “Dicionário histórico das ruas do Rio de Janeiro”, já foi chamada de “Caminho para o Engenho Pequeno”, “Caminho para São Cristóvão” e “Caminho da Bica” (por causa da Chácara da Bica, que ficava do lado esquerdo da rua). Em 1848, virou a Rua de Matacavalos, uma referência ao sacrifício dos animais ao passar pelo lamaçal da região. Em 1865, foi batizada de Rua do Riachuelo para homenagear a vitória brasileira na Batalha do Riachuelo, ocorrida na Guerra do Paraguai, sob o comando do Almirante Barroso. Vem dessa época o traçado atual da rua, dos Arcos da Lapa até a Frei Caneca.
- A Riachuelo tem uma particularidade. Como é uma das mais antigas da cidade, ela conserva imóveis das principais fases do Rio — ensina o historiador Milton Teixeira. - O casarão que fica na esquina com a Rua do Livramento, que hoje é um estacionamento, data do período colonial, tal qual a Capela do Menino Deus, a construção mais antiga do endereço.
O historiador lembra que está lá, até hoje, um chafariz construído a mando de D.João VI. A fonte serviria para o abastecimento da região, que à época enfrentava faltas d’água crônicas. Apesar de tombado pelo Iphan em 1938, o chafariz está completamente danificado, fruto da ação de vândalos. Na pedra, acima das quatro bicas, lê-se a inscrição “O Rey por bem do seu povo M.F.E.O. (mandado fazer e oferecido) pela Polícia, 1817”, instituição que o inaugurou.
- Do Segundo Reinado, restam imóveis como o casarão do Marechal Osório, que hoje é a Associação Brasileira de Filosofia, e o prédio do Hospital da Ordem Terceira do Carmo - diz Milton. - Da República, tem o Clube dos Democráticos e o prédio do jornal “O Dia”. A rua deveria ser uma rota turística obrigatória. Será um absurdo se não receber placas e indicações históricas a tempo da Copa do Mundo.
Entre cartazes pregados nos postes que vendem excursões a Conceição do Jacareí, shows da Mulher-Bambu e do MC Cabide, programas com travestis, aulas particulares de Matemática ou a salvação pelas palavras de Jesus, o passeio pela Rua do Riachuelo não deixa dúvidas: dependendo dos olhos que a percorrem, ela termina na esquina com a Rua Frei Caneca como um passeio pelo Rio Antigo, pelo presente e - tomara - futuro da cidade.
(fonte/GloboOnline)
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