"E as palavras, eu que vivo delas, onde estão? Onde estão as
palavras para contar a vocês e a mim mesmo que Tostão está
morrendo asfixiado nos braços da multidão em transe? Parece um
linchamento: Tostão deitado na grama, cem mãos a saqueá-lo.
Levam-lhe a camisa levam-lhe os calções. Sei que é total a
alucinação nos quatro cantos do estádio, mas só tenho olhos para
a cena insólita: há muito que arrancaram as chuteiras de Tostão.
Só falta, agora, alguém tomar-lhe a sunga azul, derradeira peça
sobre o corpo de um semi-deus.
Mas, felizmente, a cautela e o sangue-frio vencem
sempre: venceram, com o Brasil, o Mundial de 70, e venceram,
também, na hora em que o desvario pretendia deixar Tostão
completamente nu aos olhos de cem mil espectadores e de
setecentos milhões de telespectadores do mundo inteiro.
E lá se vai Tostão, correndo pelo campo afora,
coberto de glórias, coberto de lágrimas, atropelado por uma
pequena multidão. Essa gente, que está ali por amor, vai acabar
sufocando Tostão. Se a polícia não entra em campo para
protegê-lo, coitado dele. Coitado, também, de Pelé, pendurado em
mil pescoços e com um sombrero imenso, nu da cintura para cima,
carregado por todos os lados ao sabor da paixão coletiva.
O campo do Azteca, nesse momento, é um manicômio: mexicanos e
brasileiros, com bandeiras enormes, engalfinham-se num estranho
esbanjamento de alegria.
Agora, quase não posso ver o campo lá embaixo:
chove papel colorido em todo o estádio. Esse estádio que foi
feito para uma festa de final: sua arquitetura põe o povo dentro
do campo, criando um clima de intimidade que o futebol, aqui, no
Azteca, toma emprestado à corrida de touros.
Cantemos, amigos, a fiesta brava, cantemos agora, mesmo em
lágrimas, os derradeiros instantes do mais bonito Mundial que
meus olhos jamais sonharam ver. Pela correção dos atletas, que
jogaram trinta e duas partidas, sem uma só expulsão. Pelo
respeito com que cerca de trezentos profissionais de futebol se
enfrentaram, músculo a músculo, coração a coração, trocando
camisas, trocando consolo, trocando destinos que hão de se
encontrar, novamente, em Munique 74.
Choremos a alegria de uma campanha admirável em que o Brasil fez
futebol de fantasia, fazendo amigos. Fazendo irmãos em todos os
continentes.
Orgulha-me ver que o futebol, nossa vida, é o mais
vibrante universo de paz que o homem é capaz de iluminar com uma
bola, seu brinquedo fascinante. Trinta e duas batalhas, nenhuma
baixa. Dezesseis países em luta ardente, durante vinte e um dias
— ninguém morreu. Não há bandeiras de luto no mastro dos heróis
do futebol.
Por isso, recebam, amanhã, os heróis do Mundial de
70 com a ternura que acolhe em casa os meninos que voltam do
pátio, onde brincavam. Perdoem-me o arrebatamento que me faz
sonegar-lhes a análise fria do jogo. Mas final é assim mesmo: as
táticas cedem vez aos rasgos do coração. Tenho uma vida
profissional cheia de finais e, em nenhuma delas, falou-se de
estratégias. Final é sublimação, final é pirâmide humana atrás
do gol a delirar com a cabeçada de Pelé, com o chute de Gérson e
com o gesto bravo de Jairzinho, levando nas pernas a bola do
terceiro gol. Final é antes do jogo, depois do jogo — nunca
durante o jogo.
Que humanidade, senão a do esporte, seria capaz de
construir, sobre a abstração de um gol, a cerimônia a que
assisto, neste instante, querendo chorar, querendo gritar? Os
campeões mundiais em volta olímpica, a beijar a tacinha, filha
adotiva de todos nós, brasileiros? Ternamente, o capitão Carlos
Alberto cola o corpinho dela no seu rosto fatigado: conquistou-a
para sempre, conquistou-a por ti, adorável peladeiro do Aterro
do Flamengo. A tacinha, agora, é tua, amiguinho, que mataste
tantas aulas de junho para baixar, em espírito, no Jalisco de
Guadalajara.
Sorve nela, amiguinho, a glória de Pelé, que tem a
fragrância da nossa infância.
A taça de ouro é eternamente tua, amiguinho.
Até que os deuses do futebol inventem outra."