Foi em sua casa no Jardim Botânico,
dia 30 de novembro de 1994,
uma Quarta-feira, das 10h30 às 13h20,
em uma manhã ensolarada.
Tom Jobim em sua casa no Rio de Janeiro (1993 ) - foto: João Bittar |
A entrevista
Tom Jobim - Quando eu era garoto, eu passava as férias em Leme. Tinha aquela mata, aquele jequitibá, aquele pau-de-abraço... E a terra roxa com café e tudo. Leme, ali perto de Águas de Rio Claro, Pirassununga. Então, em 1932 a polícia pegou meu avô, e eu era pequeno, né, eu tinha cinco anos... Pegou meu avô e levou pro fundo da baía de Guanabara, onde tinha um velho navio, onde eles botaram os paulistas todos no porão.
Qualis - O seu pai era gaúcho?
Tom Jobim - Meu pai era gaúcho de São Gabriel. E o meu avô era paulista. A minha mãe era carioca. E eu nasci na Tijuca. Mas por acaso... Eu nasci na Tijuca por acaso porque faltou grana na família. Eles se mudaram, porque eles moravam em Copacabana, mas foram pra Tijuca pagar um aluguel mais barato, portanto eu nasci lá. Mas no ano que eu nasci eu já fui pra Ipanema. E Ipanema tinha aquelas dunas de areia, não tinha nada, tinha água limpa.
Qualis - Deveria ser maravilhoso...
Tom Jobim - Ipanema é um nome que vem de São Paulo. Isso pouca gente sabe porque o pessoal aqui... Ipanema quer dizer água ruim... Porque tem certos rios que são ipanema, como é que é? Eles têm, às vezes, água bonita, limpa e tudo, mas não têm alimento, não têm comida, então fica aquele rio sem peixe. Então ele se chama ipanema. Coisa que absolutamente não acontecia aqui. Aqui tinha peixe pra você jogar fora. Essa lagoa (Rodrigo de Freitas) se chamava Sacopenapam, que quer dizer uma parada de socós. Ipanema é o seguinte... O Barão de Ipanema, paulista da nobreza rural... Existe também uma microrregião rural em Minas Gerais chamada Ipanema, que deve ser por causa de um outro rio que não seja muito bom de peixe. Mas então o Barão de Ipanema saiu lá de São Paulo, veio pra cá e comprou uma fazenda aqui na beira da praia. E essa fazenda, por causa do Barão de Ipanema, ficou sendo chamada de Ipanema. É por isso que tem tanto paulista dono de apartamento em Ipanema. Aqueles apartamentos todos são de paulistas. E paulistas ricos, né. Bom, não é só paulistas mas boa parte são dos paulistas. Muitos apartamentos estão fechados, inclusive. O sujeito é rico e só vem quando decide tomar banho de mar. Então é essa mais ou menos a história de Ipanema. E o barãozinho de Ipanema, que está vivo até hoje, deve ser bisneto do
Barão de Ipanema, bisneto ou tataraneto, é o nosso amigo que bebia lá no Veloso com a gente sempre. Que se tornou aquele bar "Garota de Ipanema". Ele é o barãozinho: (recordando) 'Ô barãozinho, vamos tomar chope, tomar Whisky ..' Ele é Barão de Ipanema e tem essa ascendência em São Paulo. Como sempre, tudo vem de São Paulo, os automóveis, o café...
Qualis - Dizem que você teria proferido uma frase que poucos sabem se você falou ou não, que "a melhor saída do Brasil é o aeroporto do Galeão". (Tom se diverte e dá uma gargalhada.) Depois disso você foi morar fora do país, voltou e chegou a declarar uma certa decepção com o descaso com que a imprensa brasileira te tratou...
Tom - Hoje eu li no jornal O Globo que a Itália me escolheu pra ser homenageado em Roma... (lendo o jornal) ' Tom Jobim será homenageado no Festival de Jazz de Perugia, né, Itália, em julho de 95. A decisão foi tomada ontem em Roma...' Você leu, né? (lendo) '... por Carlo Pagnota, realizador do evento, o maior do gênero hoje na Europa. Tom tem sido elogiado pela crítica italiana, que considerou "Fly me to the moon", faixa que ele canta com Sinatra, o melhor trecho do novo Duets, o novo disco...'
Qualis - O que você diz a respeito disso?
Tom - Ah, eu fico bastante satisfeito, né. Aliás, a imprensa estrangeira tem uma atitude bastante positiva com relação a mim, né. Você vê os músicos de jazz vieram aqui e fizeram uma bruta homenagem (referindo-se ao Free Jazz), depois nós fomos a São Paulo. Isso inclusive está relatado no Le Monde que fala da apresentação lá em São Paulo. (mostra a matéria) Isso foi um cidadão que mandou da França pra mim, ele teve a gentileza de mandar da França pra mim.
Qualis - Você falou dessa coisa da atitude da imprensa estrangeira que eles realmente fazem um trabalho de cobertura. Como é que você vê o trabalho da imprensa hoje no Brasil e fora daqui?
Tom - Essas coisas que você me perguntou, que você me falou, da... (longa pausa). As notícias parece que hoje em dia... Já me falaram isso várias vezes que uma coisa inusitada vende mais jornal do que uma verdade, entende? Não adianta você falar a verdade porque sai uma outra coisa, né. Então, por exemplo, o cara que estava conversando comigo falou, ' se o cachorro morder o homem, não sai no jornal porque é uma notícia muito boba. Agora se um homem morder um cachorro, aí já fica muito melhor, né.' Então quer dizer, a imprensa tem usado muitas vezes coisas que jamais se passou. Muitas vezes essas frases que dizem que é do Tom Jobim, eu jamais disse isso, como “a saída para o músico brasileiro é o Galeão". Eu jamais disse isso. E nem acho isso, eu acho que tem grandes músicos vivendo muito bem aqui no Brasil,
cantores, cantoras, fazendo muito sucesso aqui no Brasil, né. Você não precisa ir para o Galeão para... Não precisa sair do Brasil. Agora muita coisa que se diz assim, 'o Tom disse', é invenção. O Tom disse, o Tom fala mal do Brasil, vírgula, no exterior, isso além de ser uma maldade incrível... Por que é que eu falaria mal do Brasil? Por que é que eles não dizem que eu falo mal da Tchecoslováquia, da Lituânia, né? Porque eu falo mal do Japão. Não, eles estão sempre interessados em botar o brasileiro contra o Brasil. Pelo contrário, eu deveria ser criticado pelo fato de ter descrito em minhas músicas um Brasil paradisíaco. Como diz o Sérgio Buarque de Hollanda, 'a visão do paraíso'. Quer dizer, é essa visão que eu tenho nas músicas. Eu recebi muita carta do exterior de gente que ia se suicidar e que disse 'olha, eu não vou me suicidar porque escutei essa música sua e acho que a vida vale a pena', entende, e coisas assim. Coisas muito positivas. Eu, por exemplo, não iria falar mal do Brasil porque eu não creio que isso venda disco. Se eu falasse mal do Brasil o estrangeiro ficaria embaraçado, ficaria perplexo. Você chega, você é brasileiro (rindo), então vai pra Nova York... Isso de fato não se deu. E as coisas que saíram no jornal eles foram torcendo, torcendo pra fabricar a calúnia sempre, né.
Qualis - A que você atribui esse tipo de distorção do trabalho da imprensa brasileira?
Tom - Isso é sempre assim, olha... Eu não acho que isso seja nenhuma coisa especial comigo, eles fizeram isso com o Villa-Lobos, com Oscar Niemeyer, Portinari, com Mario de Andrade... Então se você fizer alguma coisa, as pessoas começam a ser perseguidas. O Brasil persegue os homens de bem. Basta você fazer o seguinte, basta você pegar a crítica estrangeira... O estrangeiro não tem motivo pra ficar zangado comigo, ele acha a música ótima, se diverte, compra um disco e fica feliz, claro. Agora, aqui vem um negócio do... Eu vou te dar um exemplo. (levanta-se e pega na mesa um pesado tomo com matérias da imprensa brasileira) Quarenta anos de Tom Jobim na imprensa. (Ri e balança na mão o pesado compêndio) Você imagina pra carregar isso, né. Isso vai de 52 a 92. Você vê que o conteúdo do negócio é todo negativo, entende?! É a negação do troço! Então o Antonio Carlos Brasileiro de Almeida deles, eles vão dizer que o Antonio Carlos não é brasileiro, eles vão colocar o brasileiro contra o Brasil. E vão sempre fazer o negócio de cabeça pra baixo... Sempre. Então é o destino deles isso, né. Eu vou fazer uma coisa que eu julgo positiva, que a minha música não é pra levar à droga, nem à violência, nem à motocicleta, nem nada disso. A minha música é pra levar o cidadão a Deus. Se você fizer um anúncio do chope da Brahma a imprensa brasileira toda cai de pau. E depois a imprensa do Rio começa a falar mal, depois a de São Paulo começa a falar mal, depois o Rio Grande do Sul, depois o Brasil inteiro. São acordes, todos. (lendo o tomo da imprensa) Tem um sujeito aqui que escreve (dando risada) que o 'Tom e o Vinícius fazendo o anúncio da Brahma são duas jararacas menstruadas'.
Qualis - Que tremenda grosseria.
Tom - É, e eu não sei porquê. Em primeiro lugar eu acho que jararaca não menstrua. Em segundo lugar eu não sei porque Vinícius e eu parecemos duas jararacas menstruadas.
Qualis - Isso me parece muita leviandade.
Tom - Mas isso tá cheio disso. Depois os plágios, os plágios de Tom Jobim. Tom Jobim plagiou não sei o quê. Quer dizer, isso é uma coleção de mentiras que faz do Brasil, esse país riquíssimo e tudo, faz inverter tudo sempre. Bota tudo sempre de cabeça pra baixo. Então você trabalhou direito, é honesto, construiu uma família, acorda às quatro horas da manhã pra escrever música, então todo mundo se volta contra você como se aquilo... Então começa a te atribuir dinheiro, e não sei o quê. A imprensa brasileira nunca conseguiu dizer que um homem rico é rico. Então rica é a Maria Bethânia, o Chico Buarque... É uma brincadeira isso, eles são uns pândegos. Os homens ricos todo mundo sabe quem são, são homens importantíssimos, são preciso citar o nome deles. E eu acho ótimo que eles sejam ricos. Eu sou a favor da riqueza. Eu não acho que a gente deva cultivar a miséria. Como disse o Joãozinho Trinta, ' quem gosta de miséria é intelectual'.
Qualis - Isso tem um fundo de verdade.
Tom - É, tem um fundo grande. (pegando novamente o tomo da imprensa nas mãos) Você vê esse troço aqui, veja o peso desse troço, não tem nada. Primeiro, sabe o que acontece? Música é um negócio que já é difícil de você falar sobre. Falar sobre música é difícil. Desde o Wagner é que eles estão falando se o robe de chambre do Wagner é púrpura ou é roxo, não sei o quê. Umas conversas que não tem nada a ver com a música. E depois o cara acaba falando mal do próprio compositor, diz que ele é aquilo, aponta defeitos físicos. Ora, a vida de um compositor não é isso absolutamente, né. Eles estão interessados em apontar defeitos e coisa e tal. E dizer que isso é crítica musical. Nem por um instante eles falam de música, nunca.
Qualis - Sobre a forma de se trabalhar música, os temas...
Tom - Inclusiva não conhecem música, né. Você pode fazer essa brincadeira, né. Tem um sujeito que escreveu "A Crítica dos Críticos" e botou todas as críticas que os críticos fizeram aos maiores gênios do mundo, Beethoven, Debussy, Brahms, Ravel. Então todo mundo escrevendo aquelas besteiras. O que é que eles iriam escrever? Eles não estavam entendendo nem aquilo que estava sendo tocado.
Qualis - No começo da sua carreira tinham uns críticos que te acusavam de falta de originalidade, que você imitava os americanos, pelo fato do seu nome, Tom... E que a bossa nova era uma coisa americanizada, e que não era brasileira...
Tom - (rindo) Você imagina... Você imagina... Bossa nova, dois nomes tipicamente latinos, tipicamente brasileiros - bossa e nova. Eles conseguiram inventar o contrário, que isso seria uma coisa estrangeira. E que Tom, que hoje em dia é um nome até comum no Brasil, tem muita gente chamada Tom... Isso é o seguinte, a minha irmã não sabia dizer Antonio Carlos então ela me chamava de de 'tom tom'.
Qualis - Quantos anos ela tinha na época?
Tom - Ela era bem pequenininha, né, começando a falar, dois ou três anos de idade, 'tom tom'. E havia uma música francesa que a minha mãe cantava pra ninar a gente, que dizia: (cantarolando a canção) 'ma vie s' en va ton guerre, ton, ton, ton..." Uma música francesa velha que pouca gente sabe. E ela escutava 'ton, ton, ton', e aí começou a me chamar de ton, ton. Chamar de ton, ton, ton, ton, depois virou Tom. No colégio eles vão sempre abreviando o nome. Ninguém vai chamar o sujeito de Felisberto Pereira da Silva de Moraes e Lima, é muito comprido, né. Aí virou Tom, e eu queria ser Antonio Carlos, evidentemente. Comecei a fazer aqueles arranjos, escrevia pra orquestra, e nunca botavam meu nome no disco de 78 (rpm). Então eu fazia aqueles arranjos acompanhando Dalva de Oliveira, Orlando Silva, cheguei a tocar com Vicente Celestino. E depois, mais tarde, com gente tida como moderna como Dick Farney, Lucio Alves. E eu queria que botasse Antonio Carlos Jobim, mas era muito comprido, entende, e o pessoal começou a colocar Tom mesmo. Inclusive um som que não existe em inglês, Tom. Então eles quiseram, numa forçação de barra, um esforço enorme, pra dizer que o Tom é 'Tan', 'Tan', 'Tan'.
Qualis - Que nem Tom Cruise...
Tom - Tom Cruise, é. Conseguiram essa besteira. Isso, realmente, nos Estados Unidos o Tom se refere a Thomas, apelido de Thomas. Antonio é Tony. Então ficou essa extravagância aí criada pela invenção constante. E depois esse tipo de coisa como a Veja faz, né, eles acham isso muito criativo talvez. Você diz assim... 'Bom dia! Tom Jobim' 'Bom dia', mentiu Tom Jobim. Vem tudo escrito assim: 'Chico Anysio, o humorismo dá muito dinheiro no Brasil?' 'Nem tanto', disfarçou Chico Anysio. Então toda frase que o artista disser... Primeiro que o artista não disse essa frase. Essa entrevista é hipotética. Ela elide o entrevistado. Não tem entrevistado. Aquilo foi criado lá na redação... In Veja, é criado In Veja. Aquele In latino, aquele I maiúsculo. Então você diz todos os absurdos que você quer, e ainda eles põem assim: 'E a mulher é bonita', justifica-se Oscar Niemeyer. ...disparou, fez não sei o quê. Então toda a frase leva um adendo que destrói a própria frase. Ora, os artistas são o sal da terra. Tem tanta gente boa e inteligente aí, Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil... Tanta gente que você pode entrevistar, Djavan, Edu Lobo, né, o Tom Jobim. Qual é a graça de você inventar uma porção de frases detratórias? Que detratam as coisas, e sempre botam isso na boca do artista.
Qualis - Você não acha que isso seria, talvez até inconscientemente, uma necessidade de auto-afirmação, do sujeito que está trabalhando, de se posicionar?
Tom - Pois é, ele prefere escrever isso da cabeça dele do que fazer uma entrevista como você vê a entrevista no exterior, no Paris Match que vai mais alto entrevistando Von Karajan, ou entrevistando André Previn. Quer dizer, é uma coisa boa pra revista. Aqui não, nós fazemos questão de, como se diz, planificar o cara, nivelar. Fica tudo aquela coisa sem dimensão. Eu dei uma entrevista pra Isto É, e ele (o articulista) fala que eu fiz uma angioplastia em Nova York, fiz um balãozinho em Nova York, né. Ele diz assim: 'Pois é, ele precisa comer menos.' Ele começou a me dar conselhos culinários, conselhos de dieta! Você imagina se alguém fica doente (rindo) e eu vou dizer 'Olha, você deve, sabe, evitar...' Depois o negócio da Plataforma, eles inventaram que eu não pagava a Plataforma: 'Tom Jobim defende a Plataforma porque é o boca-livre dele.' Eu absolutamente pago a Plataforma religiosamente. A churrascaria do meu amigo Alberico Campana que eu não quero dar prejuízo a ele, absolutamente, né. Eu sou amigo dele, né. E quando eu falei o negócio da Plataforma que é preciso fazer aqui no Leblon, tombar, não esse tombamento clássico que eles fazem. É pelo gabarito, como já disse Maria Eliza Costa, filha de Lucio Costa. Eu estou te dizendo aqui, essa zona aqui do Tivoli Park, o Clube de Regatas Flamengo, o Jóquei Clube... Porque há planos incríveis de fazer mal, aqueles supermercados imensos. Ou então erguer mesmo novas selvas-de-pedra. Então o que devia ser tombado é o gabarito. A churrascaria, você não tendo uma você vai em outra, né. Toda essa zona ali deveria realmente segurar o gabarito, da Cobal, daquela praça ao lado da Cobal, do Clube de Regata Flamengo, que aliás essas coisas já estão mais ou menos tombadas. E pra informação de certas áreas aí desinformadas, o Alberico não quer que tombe a Plataforma. E nem o proprietário do terreno da Plataforma não quer que tire o Alberico de lá, pelo contrário, ele quer entrar como sócio do Alberico. E, naturalmente, eu não tenho nada com isso. Eu acho ótimo. Eu só não acho ótimo pegar aqui, por exemplo, o heliporto, o Tivoli park, tudo, e soltar o gabarito. Porque aí você vai passar a não poder ver a Lagoa mais daqui (apontando para a janela da sala), vai fazer um paredão novamente. O que se fez com uma cidade linda como o Rio, uma cidade feita por Deus, essa topografia que nós temos, de floresta, mar e montanha, aí nós vamos encher isso de espigões. Inclusive espigões em lugares mais altos, quer dizer que cobrem ainda mais o perfil tão bonito, né, do Rio de Janeiro.
Qualis - Essa coisa de você, por exemplo, já nas tuas músicas, desde antigamente, exaltar as belezas naturais do Rio de Janeiro, isso seria uma certa atitude ecológica tua numa época em que nem se falava em ecologia?
Tom - Olha, quando eu comecei as minhas atitudes ecológicas, eu não sabia nem que elas eram ecológicas. Primeiro que eu não conhecia nem a palavra ecologia, ecólogo, eu não conhecia. E depois eu vim a conhecer essa palavra em Nova York, aí fui lá olhar no dicionário. Ecologia, será a ciência que estuda o eco?
Qualis - Isso foi em que época?
Tom - Ah, isso foi em 1966, 67, 1970. Um americano virou-se pra mim e disse: 'Você é um ecólogo.' E eu fiquei a ver navios. Só que o eco, esse eco do som que você faz 'João!', e a pedra responde 'João!', esse eco é com c-h. E o eco da ecologia, do grego, que quer dizer meio ambiente, quer dizer a casa, não tem 'h'. Nós, infelizmente, aqui em português achatamos tudo e eco ficou e-c-o. Então nós aqui não sabemos do que estamos falando, quando você fala eco, você não sabe se está se referindo ao som que volta, ao eco suíço, ou se você está se referindo ao meio-ambiente. O eco 'alô!, alô!', esse eco tem 'h'; em inglês tem 'h'. E o eco de ecologia não tem 'h'. Então são duas palavras diferentes, significando coisas diferentes. Então essa coisa de ecologia, essa preocupação, tudo o que eu vi no Brasil o que é que é? Eles cortaram 95% da Mata Atlântica! Agora eu fiz parceria num livro chamado Mata Atlântica, que está sendo escrito e fotografado (por Ana Lontra Jobim, sua esposa). A Mata mais linda do mundo, com um clima tropical de montanha, quer dizer, faz até frio no alto da floresta, com mil espécies e tudo. Isso tudo foi arrasado! Quer dizer, sempre queimando o mato. Às vezes, nem cortar as madeiras-de-lei eles cortaram, botaram fogo simplesmente. E com isso desaparecem centenas de espécies vegetais e animais, destruído tudo, né. Uma coisa lamentável essa coisa sempre de destruir tudo e plantar café, de plantar cana, que é a história do Rio de Janeiro, a história de São Paulo, a história do Paraná, a história da Mata Atlântica. Que pega essa coisa que Deus nos deu, linda, e transforma num deserto. Quer dizer, você quando vem dos Estados Unidos você olha pra baixo, a zona da Mata em Minas Gerais não tem mais mato nenhum. Tá tudo destruído, você vê aquelas moçorocas, aquelas gretas, a terra toda despencando, a serra despencando, não tem árvores.
Qualis - A erosão...
Tom - A erosão, está tudo erodido, pra não dizer... (ameaçando elegantemente sussurrar um trocadilho) Então é assim, mais uma vez essa é uma tentativa de...
Qualis - Já partiu de você uma idéia de fazer um tipo de movimento organizado pró-ecologia no sentido de preservação dessas coisas todas?
Tom - Claro. Olha, eu não tenho muito tempo pra me dedicar a isso. Agora, fiz tudo, aquele ECO-92, eu fui lá tocar tudo, né. Fizemos aí programas no Carnegie Hall, em Nova York, pra dar dinheiro para os índios, cobramos caro...
Qualis- Foi com o Sting...
Tom - O Sting, o Elton John, foi o Caetano Veloso, foi o Tom Jobim e a banda dele, foi o Gilberto Gil. E todo dinheiro foi dado pra Rain Forest Foundation E o sujeito escreveu aqui no jornal, evidentemente, dizendo 'o Tom Jobim é engraçado, ele toca de graça para os americanos mas aqui ele cobra'. Quer dizer, você não pode nem fazer a caridade para o Brasil que o sujeito novamente perverte e inverte a notícia.
Qualis- É uma visão provinciana essa, não?
Tom - E maligna, né. É uma visão de cultura da negatividade, de fazer do Brasil que é um país riquíssimo, fazer daqui um país de miseráveis, entende. Quer dizer, sempre botando fogo no mato, sempre falando mal de quem trabalha, sempre falando mal de São Paulo. Tudo que dá certo é perseguido, é apontado como uma coisa indesejável. Isso daí, essa atitude tem que mudar. Eu espero agora que com o nosso amigo Fernando Henrique na presidência isso vá mudar, entende. Mudar! Mudar isso, isso não é possível, como é que é?! Aquela teoria do quanto pior melhor, deu nisso. Deu nisso que deu no Rio de Janeiro. Você não pode andar na rua, não pode andar de carro, não pode sair à noite. Você tem que ficar pagando imposto. De um lado é o governo que quer o dinheiro, o executivo que quer dinheiro, a companhia que quer o dinheiro. E as pessoas? Pra onde é que vão? O que é que elas vão fazer?
Qualis - Muitos associam o movimento da bossa nova com o cenário político e social que o Brasil vivia naquela época, aquela coisa de mudança, turbulência, os anos JK, a indústria automobilística, Brasília etc. Alguns acreditam que o Brasil pode viver um período semelhante agora com a eleição do Fernando Henrique Cardoso, o Real, queda da inflação, e outras coisas mais. Você que viveu intensamente e produziu a cultura das duas épocas, daquela e de hoje, qual a relação que você vê entre esses dois momentos?
Tom - Eu vejo que há uma coisa positiva no governo do Fernando Henrique que lembra a coisa positiva do JK, democracia, liberdade, não perseguir os artistas. E o povo, acima de tudo o povo de uma maneira geral. Você vê que os artistas, com o autoritarismo, foram perseguidos no Brasil. E nós fomos todos presos, (longa pausa) Antes de falarem mal da gente nos prenderam, né. (dando risada) Depois começaram a falar mal da gente. Aliás, essa época do autoritarismo com telefone gravado, isso tornou o Brasil realmente irrespirável. E é talvez o responsável pelo exílio de grandes artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, como Chico Buarque, Tom Jobim. Eu fui embora, não porque tivessem me mandado embora.
Qualis - Foi um auto-exílio...
Tom - Sim, porque o ambiente estava insuportável. Você não podia fazer as músicas... Isso, inclusive, não me tocava pessoalmente. Eu não estava escrevendo música de protesto, nada disso. Mas, em solidariedade aos que estavam, nós nos recusamos a entrar naquele Festival Internacional da Canção (o 6º e penúltimo, em 1971), e foi isso que causou a nossa prisão em massa... Fomos doze ou quinze presos. Quer dizer, ninguém podia escrever nada por causa da censura mas na hora que veio o internacional todo mundo tinha que ser bonitinho. Aliás, eu acho que foi muito bom o fato do exército não ter matado a gente porque em outros países as coisas foram muito mais graves, no Chile, na Argentina. Com todas as coisas ruins que aconteceram eu ainda dou graças a Deus. Eu fui apenas detido, o que não é o caso do Caetano, do Gil, que foram realmente presos. Eu fui detido e tinha que voltar lá pra averiguações. Eu era intimado a comparecer. Agora você vê se o Tom Jobim é um homem subversivo, eu sou um homem da ordem e do progresso. Eu creio que as Forças Armadas não são sanguinárias assim no sentido de querer matar todo mundo. É claro que houve gente que foi morta nessa coisa, né. Agora, falei com o Chico, falei com outras pessoas que... (longa pausa) Em suma, essa sua pergunta eu acho que é a chance hoje em dia, por exemplo, porque o Fernando Henrique está com muita gente a favor dele, o povo a favor dele, nós a favor dele, os artistas estão querendo que ele... Votaram nele, né?
Qualis - O clima, a atmosfera pode ser propício para um tipo de fortalecimento da música brasileira?
Tom - Claro, o fortalecimento da música, da arte, de tudo. O Fernando Henrique me parece um democrata. Inclusive, já foi preso como subversivo. Eu conheci o Fernando Henrique em São Paulo, naquele tempo em que ele se candidatou a vereador, alguma coisa assim, deputado, não sei. Já me dava com ele. Já estava apoiando Fernando Henrique. Agora também, por exemplo, você vê, o nosso presidente Itamar tem a grandeza de fazer os troços direito. E agora ele está sendo acusado de namorar, de ir ao cinema com a namorada ,... que bota em risco a vida do povo, podem querer matá-lo e atingir algumas pessoas inocentes, né. (dando risada) O Itamar tem a grandeza de ser um homem comum, né. A grandeza de fazer os troços que tem que fazer.
Qualis - Agora, interessante... Essa tua observação me remete àquela outra que você fez sobre o trabalho da imprensa mesmo. Pra mim parece que esse trabalho de cobertura é absolutamente supérfluo e não tem nada a ver com a realidade do país...
Tom - Essa imprensa é a imprensa que não transmite os fatos. Por exemplo, agora eu lancei um disco novo chamado Antonio Brasileiro. A imprensa foi magnífica comigo, não tenho a menor queixa da imprensa, os críticos escreveram sobre o disco, e tudo mais tá ótimo. Quer dizer, não é toda a imprensa que faz isso não, é um certo tipo de imprensa. Eu não posso acusar a imprensa de uma maneira geral de deturpar os fatos. Agora, que aparece essas frasezinhas tal que ninguém disse e que depois são atribuídas a outras pessoas, isso aparece. Aparece esse tipo de fofoca, diz que eu me separei, que não sei o quê. Não dizem só de mim isso não, dizem de muitas pessoas. Tem um tipo de imprensa dedicada a isso. Agora, você pega a imprensa estrangeira, que me chega às mãos, a imprensa que normalmente eu não leio, então cidadãos que moram fora do Brasil me mandam essa imprensa. E você vê, eles têm uma atitude muito mais positiva em relação à arte, gostam da música, acham a música bonita, têm vontade de conhecer o Brasil. Esse Brasil que o Tom Jobim pintou como uma coisa melhor do mundo, e que certo tipo de imprensa quer trocar ao contrário, me bota no jornal morto. É um negócio... Eles devem achar isso bonito, NE.
Qualis - É como você disse, isso é o que vende.
Tom - E ao mesmo tempo eles nunca falam mal dos poderosos, evidentemente. Quer dizer, quando eles desafiam a pessoa, eles vão desafiar uma pessoa, um sujeito fraco e doente, eles vão desafiar, eles vão chamar pra brigar. Eles não vão chamar o atleta pra brigar porque eles vão se dar mal, não vão chamar o lutador. Aí depois, quando for o concurso da música, eles vão chamar o atleta pra competir com ele na música. Mas na hora de bater, vão chamar um velhinho. Fica muito interessante, muito conveniente. É a intelligentsia, que nós costumamos chamar de burritsia brasileira. (risadas) Essa do João Ubaldo, eu tô te dando o copyright. Aquele que escreve pensando que é a intelligentsia mas de fato é a burritsia.
Qualis - Eu queria conversar um pouquinho, agora que a gente já passou...
Tom - Tá ficando muito séria a entrevista. Talvez não seja o caso de fazer uma entrevista tão séria assim.
Antonio Carlos Jobim - foto: (...)
Qualis - Vamos falar um pouco sobre música propriamente dita.
Tom - (indo ao piano acender mais um charuto) Pois é, que é um assunto no qual ninguém fala. (Tom interrompe a entrevista para escolher umas camisas para as fotos, e volta falando sobre a natureza) Há sessenta anos que eu vejo o mico sagui pulando aí do galho... Essa floresta é muito cosmopolita, tem jaqueira índica, mangífera índica, mangueira, árvores da Índia, árvores e eucaliptos da Austrália. Ela não tem só plantas brasileiras.
Qualis - Você está praticamente no coração dela aqui.
Tom - (indicando a floresta ao lado do quintal) Bom, você entra aqui e essa floresta vai até o Grajaú. Tem bicho, tem paca, tem tatu, tem muito gavião, tem inhamu, tem uruta, capoeira, tem saracura, tem preguiça, tem esquilo, tem muito bicho, tem muito periquito, tem muito desses papagaínhos tipo maracanã... A minha paixão pelos pássaros é um pouco distante, entende, (rindo) eu não gosto de pássaro no colo. Os pássaros são bons soltos, voando, cantando, né, assim é que eles me divertem mais. Pássaro preso tire um pouco a... Um pouco triste...
Qualis - Você disse que tem seus ídolos confessos como Villa-Lobos, Radamés Gnatalli, Guerra-Peixe. Enquanto compositor, arranjador e orquestrador, será que hoje depois de tantas décadas você já se coloca no mesmo nível deles?
Tom - Bom, eles foram ficando moços e eu fui ficando velho, você sabe, né. É como o retrato do meu pai em cima do piano. O meu pai era o meu velho, e hoje em dia eu estou muito mais velho que o meu pai. Meu pai morreu aos 46 anos, de modo que eu já posso ser pai do meu pai, né. É isso mesmo, a gente vai tendo nossos ídolos. Radamés Gnatalli, um homem generoso que ajudou todo mundo. Villa-Lobos, um gênio incrível. O Guerra-Peixe era um orquestrador, compositor, nascido aqui em Petrópolis, morreu agora recentemente, muito amigo nosso. Ele trabalhou muitos anos em São Paulo também. Fazia orquestrações. Mas, sem dúvida, o Villa-Lobos é um vulto... Ele é um gigante... Ele ficou muito alto, ficou muito... Ficou um pouco sozinho na época dele. No meu caso não, eu estou cercado de grandes compositores, de muita gente com música popular. Quando eu comecei, a música popular era toda escrita e composta por pessoas que não sabiam nada de música. O compositor popular era praticamente analfabeto, alguns sabiam escrever as letras. Música ninguém sabia escrever.
Qualis - Você teve uma formação erudita...
Tom - Um bocado.
Qualis - Você teve também aquela professora, a Lúcia...
Tom - Lúcia Branco, que foi professora de Nelson Freire, professora do Jacques Klein, professora do Arthur Moreira Lima, minha professora, né. Você sabe, o Mário de Andrade disse, 'se você for um gênio faça música brasileira'. Porque em Hollywood já tem milhares e milhares de compositores, orquestradores, você não precisa ir pra lá.
Qualis - E quanto às suas atividades no exterior?
Tom - Eu não estou muito preocupado com isso. Não.
Qualis - Atualmente como estão as coisas, pois amanhã (01/12) você está indo pra Nova York.
Tom - É, eu tenho grandes convites, pra fazer grandes coisas em Nova York. Agora, a Kathleen Battle, a grande cantora, a grande soprano negra, ela parece que quer gravar umas músicas minhas. Eu também tenho vontade de conhecer a Barbara Hendrix, que canta o Villa-Lobos. Essa Battle é soprano do Metropolitan Opera. Depois a Sony internacional quer que eu faça um disco com músicas minhas, tratadas assim com um pouco mais de orquestra, um pouco mais sinfônicas. O Jonh Hendrix tá querendo gravar comigo também, um grande saxofonista de jazz muito bom. John Hendrix, ele esteve aqui na homenagem que fizeram aqui, muito simpático, né. Em suma, o mundo tá cheio de coisas. Agora, por exemplo, sair do Brasil pra fazer a América e tal, como... Ah, isso já não dá.
Qualis - Ainda falando sobre Villa-Lobos, ele sintetiza de uma certa forma a alma brasileira, assim como George Gershwin, Irving Berlin para os Estados Unidos. Você é um compositor que retratou a alma brasileira...
Tom - Muito! Muito! Aliás, o Villa-Lobos tem uma música chamada "Alma Brasileira". Porque o Brasil teve que ser inventado, entende. Não existia o Brasil. Tudo aqui é importado, tudo, o relógio, o gravador. E quando não importado, é copiado do original que vem de fora. E o resto mais é importado, o café é importado, a cana de açúcar é importada, o eucalipto é importado, os carros são importados, nós somos importados... Os índios são importados, vieram da Polinésia, né, com os zigomas salientes (ossos temporais), aplica mongólica (dobras ou rugas faciais), a zarabatana. Então, a Ilha Brasil, talvez, é uma grande ilha com as espécies muito diferentes do resto do mundo. Aqui você não tem animais do presépio de Jesus Cristo, não tem. Você não tem vaquinha, boizinho, galinha, ovelhinha, nada disso existe aqui. Tudo isso é importado. Aqui tem tamanduá-bandeira, tem gambá, tem preguiça, peixe-boi, entende, são animais realmente diferentes.
Qualis - Essa tua admiração, por exemplo, por Villa-Lobos é uma identificação dessa busca incessante pela alma brasileira?
Tom - Isso foi em outros tempos naturalmente, por que você tá aqui, o rádio toca música norte-americana. Você tem que ter alguma coisa que você ame, que você se identifique com a sua alma, com o fato de você ser brasileiro, com o fato de você nascer aqui nesse pindorama, terra das palmeiras debruçadas assim acima do Atlântico. Cheio de peixes, cheio de pássaros, de bichos, de índios, de tudo, né. Se eu tivesse nascido, por exemplo, na Europa ou nos Estados Unidos, certamente teria tido uma educação musical, supondo-se que eu fosse músico, uma educação musical mais refinada, mais profunda, ou qualquer coisa. Mas eu não iria escrever música brasileira por que eu não seria brasileiro. Aí eu iria escrever valsas, mazurcas, escrever foxtrote, talvez eu estivesse escrevendo heavy metal.
Qualis - Você que compôs mais de quatrocentas músicas...
Tom - Dizem, dizem... Pelo menos umas cem se perderam. Que eu saiba, aí no arquivo talvez só tenha umas trezentas. Você vai perdendo no avião, vai perdendo...
Qualis - Falando ainda sobre essa identidade brasileira...
Tom - É possível que isso acabe, essa identidade. Com a mídia hoje em dia que bota todo mundo vendo, nós estamos vendo tudo ao mesmo tempo, né.
Qualis - A simultaneidade...
Tom - Pois é, a guerra na Bósnia, a guerra no Irã, o Iraque, os problemas dos Estados Unidos, o Oriente Médio, o problema do tráfico de drogas, o Brasil envolvido nisso com a passagem das drogas ao Brasil, né.
Tom Jobim - foto: Marcos Issa
Qualis - Essas coisas todas dificultam o trabalho, eu imagino, do artista em ficar em constante contato com a sua própria raiz pra produção da sua obra, da sua música. Como é que você vê essas dificuldades em continuar mantendo contato com essa coisa brasileira, as raízes?
Tom - Vai ficando cada vez mais difícil. Esse é um negócio que eu cheguei a conversar com o Vinícius, vai ficando cada vez mais difícil. Por que você destrói a Mata Atlântica toda, você destrói a floresta amazônica, quando chegar no poema do Villa-Lobos, você não vai entender porque não tem a Amazônia. Por exemplo, eu vejo no meu filho de 15 anos, como é que ele pode conhecer as qualidades de passarinhos? Ele não conhece. Ele não conhece os bichos, ele não conhece as árvores. Porque essas pessoas que aí estão nunca viram esse Brasil, esse Brasil eles não conhecem, eles conhecem o Brasil asfaltado, com o sinal vermelho, o guarda, a violência, a metralhadora, isso eles conhecem. Agora eles não conhecem a jacutinga, não sabem quando o murici floresce lá no alto da serra (árvores e arbustos que dão frutos), não sabem quando a jacutinga vai lá comer o coco da juçara. Eles não sabem o que é juçara, nem se a juçara dá coco, nem coisa nenhuma. Enquanto isso o pessoal, quando o outro fala de ecologia, começa a cortar mais depressa antes que apareça o fiscal, ou qualquer coisa que impeça a destruição. Porque toda arte é ligada ao seu tempo. A arte de Debussy é ligada ao tempo dele, a arte de Charlie Parker... A arte de Gershwin, aliás Gershwin falou isso 'o que eu escrevo é uma coisa ligada ao agora de Nova York'.
Qualis - Por isso a música dele tem essa coisa viva de uma época.
Tom - Exatamente, da Broadway, dos shows.
Qualis - A tua música tem uma coisa muito viva de uma época do Brasil também.
Tom - Ah, espero que sim. E como ficou chato ser moderno, né, 'agora serei eterno', diz o Drummond ao perceber a mudança das letras (dando risada).
Qualis - Só pra gente encerrar a passagem do Villa-Lobos aqui na nossa conversa, como é que você vê o trabalho do Egberto Gismonti, ele é um outro cara que faz um trabalho orquestral, sinfônico, e ele tem uma inspiração muito profunda no trabalho do Villa-Lobos.
Tom - Bom, isso eu não sei porque eu não conheço tanto o trabalho dele. Eu acho que ele fala na floresta também, nos índios.
Qualis - Você é um compositor, um cantor, e o Gismonti é basicamente um instrumentista. Eu vejo dois músicos brasileiros que trabalham com uma mesma inspiração.
Tom - Eu gosto muito do Gismonti e acho que a inspiração que possa vir do Villa-Lobos acho muito boa, muito válida, entende. É isso mesmo, nós temos que falar do Brasil. Porque pra fotografar o Pólo Norte tá cheio de gente lá. Então é isso mesmo. Eu conheço o Gismonti desde que ele chegou ao Rio de Janeiro, ele é um grande músico, um talento formidável.
Qualis - Falando sobre música instrumental. O Brasil que tem essa tradição muito criativa e popular como Pixinguinha, Severino Araújo e a Orquestra Tabajara, e muitos outros. Existe uma coisa no Brasil de se valorizar a música cantada, mas até quando você acha que os nossos músicos servirão de fonte de inspiração para os artistas internacionais, enquanto aqui a preferência parece ser pelo que vem de fora?
Tom - Houve um tempo no Brasil em que os maiores sucessos na rádio eram instrumentais como o Waldyr de Azevedo com o "Brasileirinho". Tocava o "Brasileirinho", que tocava no mundo inteiro.
Qualis - O Jacob do Bandolim...
Tom - O Jacob do Bandolim mais o Radamés... Mas, um ambiente um pouco mais erudito, né. O Waldyr de Azevedo era o delicado. Sendo que o "Delicado" dominou o mundo inteiro, tocou em tudo quanto era lugar. Quer dizer, sempre houve essa coisa da música instrumental e da música vocal. A música vocal tem isso, tem a bela cantora, que é bonita, que tem a voz bonita, a Gal Costa, e as letras bonitas. Porque muita gente gosta de ouvir por causa da letra. Agora, por exemplo, se você pegar o disco Antonio Brasileiro, tem instrumentais lá. O "Meu Amigo Radamés" é todo instrumental. O "Radamés Y Pelé" são duas homenagens que eu faço ao maestro Radamés e ao nosso incrível Pelé.
Tom Jobim e Radamés Gnatalli - foto: Acervo Funarte
Qualis - Como é que surgiu a ideia de fazer essas instrumentais em homenagem ao Radamés Gnatalli?
Tom - O Radamés é uma coisa formidável, a generosidade... O Radamés orquestrou a música brasileira toda. Fez muita música erudita, muito boa.
Qualis - Você o consideraria o maior ou um dos maiores arranjadores?
Tom - Bom, eu não gosto muito dessa coisa de "o maior", eu acho que o raciocínio comparativo é falso. Frank Sinatra com Pavarotti, o Brasil com os Estados Unidos. Eu acho que as coisas são incomparáveis, entende. Eu vejo o Radamés como um homem que além de tudo... Porque é muito difícil você viver de música erudita, de música instrumental, se você não tem orquestra sinfônica. Como é que você vai fazer? Não dá pra fazer.
Qualis - Uma tradição, uma estrutura no próprio país de desenvolvimento disso...
Tom - Você vê a nossa orquestra aí, por exemplo, tá a perigo. Não tem verba. Parece que um certo pedaço do país se desenvolveu para um lado e por outro lado esqueceu. O problema das orquestras sinfônicas é que muitas orquestras sinfônicas fecharam no mundo por falta de verbas. Eu conheci gente que tocava na sinfônica e que saiu. Em suma, isso realmente é um problema. O governo tem que cuidar disso; o ministro da Cultura. O que é que eu posso dizer? Agora, a música instrumental aparece. Aparece nesse grande músico Egberto Gismonti. A música instrumental, por exemplo, lá fora leva uma grande vantagem. Ela não precisa da tradução da letra, das versões que geralmente são trabalho de terceira classe. Versão é negócio horroroso. A não ser quando é uma coisa bem feita. É tradutore e traditore, quer dizer tradutores traidores. Eles sempre traem o que eles traduzem, então eles contam uma outra história. E quando fica bom o som, perde o sentido. E quando o sentido fica bom, o som não fica bom. Então vira um xadrez... Então é muito melhor quando você pode ouvir a obra como ela foi feita. Como é a música americana, como a coisa que o Sinatra canta, a coisa que os Beatles cantam em inglês. Agora, imagina você traduzir tudo aquilo para o português. É uma tarefa ingrata.
Qualis - Falando sobre música instrumental, você fez a trilha sonora do filme do Paulo César Saraceni, o Porto das Caixas...
Tom - Instrumental, ganhei até um prêmio, uma estátua lá, de prata, não sei o quê, uma coruja de ouro, alguma coisa assim.
Qualis - Como foi essa experiência de fazer trilhas sonoras?
Tom - Eu sempre fiz muita trilha sonora de filmes brasileiros que nunca ninguém viu e nunca ninguém ouviu. Eu fiz O Porto das Caixas (1963), e fiz A Crônica da Casa Assassinada (1971), essa deu mais prêmios. É bonito e ficou bonita a trilha. Já passaram tantos anos que eu já posso dizer que é bonita a trilha. Eu gravei aquela trilha nos Estados Unidos com a Sinfônica de Nova York. O Paulo César Saraceni era o diretor do filme, quem escreveu A Crônica da Casa Assassinada foi o Lúcio Cardoso. Depois disso fiz muita trilha sonora e recentemente fiz a trilha para aquele filme da Ana Maria Magalhães, como é que chama o filme? (perguntando a Gilda Matoso na sala)
Gilda - O filme chama Erotique, mas o episódio dela é baseado na Clarice Lispector, são três ou quatro diretoras.
Tom - Eu sempre tenho feito música para o cinema. Eu fiz o Gabriela, Cravo e Canela, do romance de Jorge Amado, feito pelo Bruno Barreto, que tinha a Sônia Braga e o Marcello Mastroianni... A gente vai fazendo.
Qualis - Você tem um método de escrever as composições para trilhas sonoras?
Tom - Vendo o filme, né. Às vezes, por exemplo, o sujeito já tem o script pronto e você já pode trabalhar antes mesmo de ver o filme. Você trabalha antes, durante e depois, fazendo os acertos, as minutagens, aquilo tem que ser uma coisa precisa.
Qualis - Mudando um pouco o rumo do nosso papo, faz um bom tempo que você vem denunciando e reclamando do absurdo do sistema de recolhimento dos direitos autorais no Brasil...
Tom - Isso daí é um assunto que tem mil anos. Desde que eu me entendo, as pessoas estão... Quando você vê artistas, Dorival Caymmi com oitenta anos fazer show é porque ele está precisando de dinheiro. Quando eu faço show é que eu tô precisando de dinheiro. Ary Barroso fazendo show é porque ele não podia se manter com os direitos autorais, não podia ficar em casa tomando whisky. Não dá, não dá. Esse negócio de direito autoral, você precisa ter muita música, e também serem muito editadas. Os editores carregam 80% dos direitos, aí não dá.
Qualis - Você já se envolveu num movimento mais direto e engajado?
Tom - Eu não sou muito de andar. Já fiz passeata e essas coisas. Lá em casa todo mundo era socialista, mêu avô, meu padrasto, minha mãe. Lá em casa aquelas estantes de livros é tudo Engels, Marx e Lenin, né. Eu fui crescendo, eu fui ler aquele negócio, fui tentar entender aquilo. Essa geração minha, era toda uma geração de esquerda. Essa coisa do Brasil, 'ordem e progresso' misturado com o positivismo de Augusto Comte, e a crença que o comunismo e o socialismo seria a melhor solução para o Terceiro Mundo. Parece que a coisa não deu certo, não. O Villa-Lobos disse um pouco antes de morrer que 'a solução evidentemente para o Brasil, é o socialismo e o comunismo, mas infelizmente no momento eu não posso perder um mercado como os Estados Unidos da América do Norte' ele falou isso na televisão. Isso é muito engraçado porque ele não tinha mercado nenhum nos Estados Unidos (rindo). Isso é causado pela imprensa, aquele negócio do dinheiro, do dinheiro, porque quando o Villa-Lobos mais ou menos se mudou de Paris pra Nova York, aí os comunistas acharam ruim. Do berço da civilização vai pra Nova York pra ser capitalista. E ele então, grande gozador, disse 'infelizmente no momento eu não posso perder um mercado como o dos Estados Unidos'. O mercado, coitado, do Villa-Lobos era apenas a "Bachiana n° 5", a cantilena da "Bachiana n° 5" (cantarolando a música). Com isso ele iria morrer de fome. Hoje gravaram lá no exterior mais alguma coisinha. Só não tem Villa-Lobos gravado aqui.
Qualis - Falando sobre a bossa nova, um assunto inevitável, o que é que você guarda desse período? Os longos papos com Vinícius, algum porre específico, a sensação de ser cortejado por lindas mulheres, a loucura do João, ou alguma música especial que sintetize aqueles momentos?
Tom - Ah, eu sei lá. É tanta coisa boa. Eu acho que é tudo isso aí que você disse. (rindo) Mas de porre a gente não se lembra quase de nada, né, tá tudo meio apagado. (estalando os dedos) A bossa nova, o jeito, o suingue, o balanço, a malandragem... Nova é a palavra mais usada na imprensa do mundo todo. Nova Gillette, a nouvelle vague, a new wave... E naturalmente aqui nós tentamos provar que a bossa nova não tinha bossa e que era velha. (rindo) É justamente o contrário da bossa nova. E também muita coisa sem ser bossa nova foi chamada de bossa nova. A geladeira bossa nova, o presidente bossa nova, o presidente Juscelino Kubitscheck, a era bossa nova.
Qualis - A bossa nova funcionava como uma espécie de trilha sonora para os acontecimentos da época.
Tom - Exato. Essa palavra bossa já era usada pelo Noel Rosa, 'são bossas nossas' ele falava nisso.
Qualis - Bossa na época era quase como uma gíria...
Tom - A bossa é o seguinte, a bossa são as bossas cranianas. O crânio tem convexidades que correspondem a concavidades onde se encontra a massa cinzenta. Então o sujeito tinha a "pelota para o lado de cá", então dizia 'você tem bossa pra isso, tem bossa pra tênis, tem bossa pra cultura, tem bossa pra criminoso...' Aliás, essa palavra existe em inglês, a palavra boss, no sentido de protuberância. Não no sentido de chefe, de bass, do holandês. Boss no sentido de calombo, de bossu (francês), de Bossu de Notre Dame. É a bossa nova, bossu é o calombo.
Qualis - Como uma proeminência?
Tom - Exatamente. Uma coisa profunda é a bossa. Eu cheguei a pensar que a bossa vinha daquele boi que tem a bossa assim, que fica balançando. Mas a bossa é realmente as qualidades físicas, intelectuais, poéticas do cidadão que tem uma coisa como Noel Rosa tinha, uma bossa danada, suingue, uma ginga. Nos Estados Unidos eu vi em várias enciclopédias americanas, eles têm a palavra bossa nova lá... Aquelas conversas, um tipo de dança, um tipo de samba related to jazz, não sei o quê e tal. Porque a mentalidade americana é aquisitiva, quer dizer, lá toca a canção japonesa, como toca a canção mexicana, como toca a canção brasileira. Então quando o americano diz Cuban jazz, ele está se referindo a música cubana. Aí ele tá botando o jazz lá. Aí o crítico brasileiro pensa que o samba é jazz também porque o americano vai escrever Brazilian jazz. Aí o Tinhorão vai dizer 'aí, tá vendo, eu não te disse, é americano, é Brazilian jazz'.
Qualis - Da mesma forma como baladas do Djavan, da Elis Regina ou do Ivan Lins, eles consideram como Brazilian blues.
Tom - Brazilian blues, exatamente. Então isso vai causar uma barafunda (mistura desordenada de coisas) no crítico brasileiro, sobretudo nos que forem mais puristas, né. Aí o sujeito vai dizer que 'piano não é um instrumento brasileiro, saxofone não é'. Eu vejo aí classificados, têm músicos, têm eruditos aí que tratam a música do Radamés a música de jazz, eles chamam de música de jazz. Porque eles usam o jazzband, usam o trombone, o trompete, o saxofone. Então é orquestra de jazz. Eles causam uma confusão que tudo vira jazz. Eu diria que o jazz vem do verbo francês jaser ( falar desmedidamente, com indiscrição . All that jazz, é tudo aquilo que jazz, ou seja, tudo aquilo que fornica.
Qualis - Você é considerado por muitos como a própria personificação da bossa nova...
Tom - Eu sei lá. Você sabe, eu não cuido desses assuntos. A bossa nova é a bossa dos campos de arroz. O músico bossa nova, ele chega cansado, suado na festa pra tocar. Ele se arruma todo e vai tocar, daqui a pouco ele tá sequinho e não está mais suado, tá bonito, tocando tudo certinho. Agora, já o outro músico que já não é da bossa nova, ele chega na festa todo arrumado, todo careta, e vai tocar, se despenteia todo e sua. É um processo completamente inverso. Um chega arrumado na festa e acaba desarrumado. O outro chega desarrumado e acaba arrumadíssimo - é a bossa nova. A bossa nova influenciou o mundo todo, todo mundo resolveu escrever bossa nova nos Estados Unidos. E os latinos lá resolveram escrever a bossa nova. Como se ela fosse uma dança, como se ela fosse uma conga, um mambo, uma rumba, entende.
Qualis - E a impressão que dá é que a cada ano que passa a bossa nova, pelo menos nos Estados Unidos e Europa, é uma coisa cada vez mais moderna.
Tom - É, a bossa nova é...
Gilda Matoso - Olha, tá aqui hoje no Jornal do Brasil, a quantidade de discos, falando exatamente sobre isso, que no Japão o último grito da moda é a bossa nova.
Tom - Eu disse para um cara da imprensa, só pra sacanear, por que é que os japoneses gostam tanto da bossa nova? Ele me disse 'é porque eles tem bom gosto' (rindo). E o Caetano disse o seguinte, que eu achei muito engraçado, 'o Brasil precisa merecer a bossa nova, merecer pra poder ir à praia e casar com uma mulher bonita, fazer a casa, andar de barco. Tem que merecer a bossa nova, ele não pode só ficar gostando de coisas tristes, daqueles boleros chamados suicídios, não pode.’
Qualis - Você acha que a bossa nova seria um tipo de antítese da dor de cotovelo da música da década de quarenta?
Tom - Eu não digo antítese porque senão ficamos sempre nesse maniqueísmo. Eu acho que a bossa nova é bem mais positiva.
Qualis - A bossa nova fala da dor de cotovelo e desses problemas como em "Lígia", por exemplo.
Tom - É bossa nova "Lígia"?! Mas a "Lígia" não é bossa nova! As músicas que eu gravo o pessoal chama de bossa nova, não é característica. Tem inclusive bossa nova nesse disco (Antônio Brasileiro), tem o "Surfboard" com ritmo bossa nova, com uma introdução bossa nova, mas, por exemplo, "Meu amigo Radamés" não tem nada de bossa nova. É uma música que tem bossa e que é nova. Se não me engano são oito inéditas no disco de quinze faixas. Mas alguns encontraram menos músicas inéditas. Porque nós só conhecemos as músicas editadas, as músicas inéditas nós não conhecemos. Eu conheço Beethoven, Ravel, Bach, Charlie Parker, George Gershwin, mas são músicas editadas, né. E às vezes eles estão esperando que seja tudo inédito. Perguntaram ao Baden Powell: 'Escuta, o seu novo CD tem músicas inéditas.' Ele disse: 'São dezesseis inéditas de sucesso.' Bem, aqui também você faz a música um ano atrás, dois anos atrás, três, dez anos atrás, e (dizem) 'Música velha!' 'Ih, essa
música tava na novela do ano passado ("Querida"), é uma coisa antiquíssima.' É uma música de uma ano, quer dizer, é um neném. Eu toco música aí nesse piano de trezentos anos.
Qualis - Como é que você designaria a paternidade da bossa nova?
Tom - (rindo) Eu acho que a bossa nova estourou lá fora com o negócio do João Gilberto. Quem mais? João Gilberto.
Qualis - E a Nara, o Ronaldo Bôscoli e a turma da zona sul?
Tom - Vieram depois. Eles eram inclusive mais jovens.
Qualis - Então o João Gilberto foi o porta-bandeira da bossa nova?
Tom - O João Gilberto, o Tom Jobim e aquele pessoal que estava lá no Carnegie Hall. E teve aquelas gravações, estourou o "Desafinado", estourou "Garota de Ipanema", estourou "Meditação", e tudo isso foi pra parada de sucesso. E depois foi gravada toda aquela bossa nova do Ronaldo Bôscoli com o Roberto Menescal, o Carlinhos Lyra, todo mundo e muita gente boa ali. Aquele que andava com o Sérgio Mendes, o Durval Ferreira... Gravou-se muita bossa nova. Eu acho que foi isso que deu consistência ao movimento. Inclusive esse negócio de chamar a bossa nova de jazz, isso tudo era um pouco revoltante pra mim. Eu acho que foi bom porque senão teria desaparecido. O americano aí escreveu tudo, botou na Library (biblioteca) do Congresso, aquele negócio. Eu digo, segura os arquivos implacáveis. Então tá lá, bossa nova. E você tem a música escrita, tem alguma coisa. Por que aqui fica esse negócio, era e agora não é. Se você pegar aqui esse livro que eu te mostrei, aí tem escrito o fiasco da bossa nova nos Estados Unidos. Fiasco, uma vergonha no Carnegie Hall, falta de organização. Mas não adiantou eles escreverem nada disso porque a bossa nova já tava gravada. O pessoal do cool jazz, o pessoal da West Coast (Costa Oeste americana) já tinha gravado a bossa nova. Tá tudo escrito aí, uma coisa pavorosa. Quer dizer, o inimigo do brasileiro parece que é o brasileiro mesmo, né. Não tem outro. O inimigo do brasileiro não foi o imperialismo americano... (rindo) Não é nada disso não.
Qualis - Você ratifica aquela famosa frase de que "o Brasil não conhece o Brasil"?
Tom - É. Isso é um samba do Aldir Blanc com o Maurício Tapajós. (cantarolando o samba) Sabe como é que eu vejo o Brasil? Esse Brasil que eu não vejo aqui na televisão, embora eu tenha vinte canais aqui? Eu vejo o Brasil nos Estados Unidos... Aparecem os índios, aparece eles caçando, eles comendo macaco, aparece tudo. O Brasil aí na fronteira com a Venezuela, na fronteira com a Colômbia, as pessoas andando no mato com flecha envenenada, com zarabatana. Aqui eu não vejo isso. Aqui não tem índio.
Qualis - A CNN mostra uns pedaços do Brasil que é impressionante.
Tom - É, pois é, exatamente. Mostra as queimadas, o fabrico do carvão, a situação da Amazônia. Coisas que a gente não vê porque eu tô aqui vendo outras coisas, passa a novela da Globo... Aí você vê muita coisa que tá acontecendo mesmo, aqueles pobres índios, você imagina, andando no mato e carregando filho nas costas, sem agricultura de espécie nenhuma. Quem é que conhece esse tipo de coisa? Ele vive da caça, do palmito, da fruta e da pesca, andando pelo mato. Lugares maiores.
Qualis - Como é hoje o teu relacionamento com o João Gilberto? Ficou algum ressentimento?
Tom - Não. Eu não sei porque sai na imprensa sempre... Olha, aí nesse livro grosso onde se cria ressentimento... Eu não conheço nenhum ressentimento do João. Acho que pelo contrário, o meu trabalho com o João foi um trabalho muito positivo e que rendeu frutos maravilhosos pra música brasileira. (um pouco indignado) Não vejo nada disso. Mas você só encontra aí (apontando para o tomo de imprensa) o ressentimento, a mágoa, eu não sei do que é que eles estão falando. Mas isso tá cheio disso aí 'vamos ver se é possível juntar os dois', o negócio do concerto da Brahma. Eu não sei o que é isso não. Realmente a história passou pra imprensa, não sei o que eles querem dizer com isso. Eu acho que o meu trabalho com o João Gilberto é uma coisa que deu frutos, entende, foi uma coisa fecunda e muito gravada, muitos discos. Mesmo o que nós gravamos aqui, os discos foram todos editados nos Estados Unidos. Coisa que raramente acontece, você fazer um disco aqui e ele ser editado lá nos Estados Unidos. O que acontece é outra coisa, lá eles gravam os discos deles e consomem os discos deles. Os discos brasileiros são discos brasileiros que chegam lá, conforme foram gravados aqui. Do Caetano, do Chico Buarque... Mas são discos made in Brasil. Não é como no caso do João Gilberto, o disco made in Brasil foi feito nos Estados Unidos. Aquilo não é uma música gravada nos Estados Unidos, é uma música que foi gravada aqui e foi reeditada na América (do Norte). Então eu só vejo motivo para o João gostar desse nosso trabalho, só vejo motivo para o Tom gostar desse trabalho, né. Não vejo motivo nenhum para ressentimentos, nem mágoas.
Qualis - Isso é um ruído de comunicação?
Tom - A comunicação faz muito ruído e não se comunica. As máquinas estão cada vez mais velozes, e a informação não tem porque o sujeito... Aparece essa porção de invenções. É o jornalismo criativo. O jornalismo formador de opinião. Eles vão formar a opinião e dizer que o artista é rico, que não sei o quê. Mas isso é a vontade do cara que escreve de ficar rico. O artista, ele tem vontade de outras coisas que não tá saindo na reportagem. Eu não posso falar sobre João Gilberto, pois, há anos que eu não tô com o João Gilberto. O João Gilberto outro dia esteve aqui em casa. O João Gilberto é um homem de hábitos monásticos, é um homem recluso, um homem do claustro. O João Gilberto não sai, não vai no restaurante. A vida de João Gilberto é diferente.
Qualis - Ele é uma pessoa introspectiva.
Tom - Bastante.
Qualis - Você é uma pessoa extrovertida, né?
Tom - Talvez, por força das circunstâncias. Porque eu quando era garoto, eu gostava de subir numa árvore e ficar quieto lá em cima. Gostava de subir no telhado... Tinha um pouco um caráter meditativo. E hoje em dia naturalmente tudo isso foi bagunçado pela constante... E hoje em dia inclusive tá difícil de trabalhar porque é entrevista o tempo todo, né. É o preço da glória. Preço da Glória, do Flamengo, do Botafogo, Copacabana, de Ipanema, Leblon. O sujeito me perguntou lá no avião 'qual é o preço da glória'. Eu disse 'deve estar semelhante ao preço do Flamengo'.
Qualis - Você falou dessa coisa de falta de tempo, do trabalho todo...
Tom - É você vai ficando muito aperreado disso tudo.
Qualis - Você está num momento da tua vida bastante produtivo ainda, e você já produziu muita coisa e escreveu a história da música popular brasileira...
Tom - Exato, eu acho que já posso parar, né?
Qualis - O que você espera da tua vida e qual o teu plano para o futuro?
Tom - Descansar, comprar uma bengala, uns óculos novos (rindo) pra poder ver as moças de uma distância oficial.
Qualis - O que move um veterano como você a gravar, lançar novos discos, viajar pelo mundo e atender jornalistas como eu que fazem sempre as mesmas perguntas?
Tom - Não, as tuas perguntas estão um pouco diferentes. Mas certamente o que move é que têm essas músicas bonitas, né, que foram feitas e foram movidas pelo amor. Ninguém pensou em dinheiro e nada disso. A gente era pobre mesmo e fez essas músicas, porque eu gostava de uma garota, ou porque achava que o mar tava bonito, o céu. Então nós tínhamos outras razões pra viver. E depois, naturalmente que essa coisa foi tomada pelo povo brasileiro. Essas músicas também são músicas que nós acreditávamos locais. Quer dizer, quando eu fiz essas músicas eu achei que não ia sair de Ipanema, achei que isso ia chegar em Copacabana.
Qualis - Vocês não tinham pretensão de 'vamos atingir São Paulo e as outras capitais'?
Tom - Não, nada disso. 'Vamos atingir São Paulo', essa conversa já me dá uma preguiça. 'Vamos fazer os Estados Unidos', 'made in America', 'to make America', isso me dá um cansaço invencível. Eu nunca teria ido aos Estados Unidos se o Itamaraty não tivesse me obrigado a ir aos Estados Unidos. E eu nunca teria tentado ir a América, uma coisa dificílima. Sair daqui depois de grande, sem falar inglês, tentar a vida, tentar o quê? Ser o quê? Sapateiro, pianista... As profissões são poucas, ditador, carteiro, soldado. O sábio declarou ao jornal que ainda falta muito para o mundo adquirir um nível razoável de cultura. Até lá felizmente estarei morto. Aí vai ter muito mais fumaça e tudo, né. De que adianta você pagar milhões de impostos e morar numa cidade que você não pode respirar? Que imposto é esse que você tá pagando? São as grandes cidades, né?
Qualis - No movimento espontâneo da bossa nova vocês não tinham nenhuma pretensão...
Tom - Uma música como "Desafinado" é uma música que nenhum cantor quer cantar. Porque ele vai ser chamado de desafinado.
Qualis - Isso era um atestado da desafinação?
Tom - E o sujeito escreveu na imprensa, 'João Gilberto é desafinado mas tem uma voz muito bonitinha'. (risadas) Agora, acontece que o João Gilberto não é desafinado.
Qualis - Assim como estranhavam o violão dele também...
Tom - Que nada! O violão do João é uma coisa clássica. Porque a grande coisa do revolucionário do moderno é que ele vira clássico. Como Debussy virou um clássico. O Stravinsky foi dar uma conferência em Harvard, ele já estava meio velho, e ele chegou lá, tinham aqueles alunos jovens. (Um deles disse) 'Maestro, o senhor fez uma revolução completa na música'. Ele pega um objeto na mesa (Tom pega um objeto na mesa) e disse: Ólha, meu filho, uma revolução completa é isso. (girando o objeto em 360 graus) Porque se você fizer meia revolução, aí fica tudo de cabeça pra baixo, é o pau-de-arara. A revolução completa são 360 graus, volta tudo para o mesmo lugar! O cara vai pensar que vai revolucionar botando de ponta-cabeça. Aí fica tudo ao contrário.
Qualis - O Dorival Caymmi falou que a maior ambição dele seria compor um tipo de música que ficasse na memória do povo, e que passado o tempo todos esqueceriam o nome do compositor, mas não a música. Como o folclore. Você acha que é preciso estudar muita música e conhecer a alma do povo pra alcançar uma simplicidade absoluta? Como fica a intuição e a técnica?
Tom - É claro que tem pessoas intuitivas que nunca estudaram nada e que fazem canções lindas. Existem pessoas que não estudam e nascem sabendo fazer música, sabendo desenhar, sabendo qualquer coisa. Sem dúvida. Agora, é evidente que se você entrar no mundo da música, no mundo do cinema, você vai ter que ter lápis e papel pra poder escrever uma coisa pra você se situar. Eu acho também que certos músicos intuitivos, eles nunca quiseram estudar música com medo de perder a bossa. Iriam ficar assim muito quadrados, muito rígidos. Ficaram sempre de olho no balanço, na ginga.
Qualis - Como é que você solucionou isso o tempo inteiro?
Tom - Ah, eu sou um mestiço de popular com erudito. Sou um eruditinho, né. Eu sempre falei mal de mim, mas com moderação. O pessoal aproveitou pra exagerar um pouco. (risadas)
Qualis - Você definiria uma linha entre o erudito e popular?
Tom - Não, eu não defino linhas de fronteira entre a música popular e a música erudita. Inclusive Chopin, Villa-Lobos, está cheio de temas populares dentro da música erudita. Essa divisão é falsa, não leva a nada também. Certas pessoas gostam de dar nome às coisas. E dar nome às coisas impede a compreensão. Eu chamo Maria de Maria e aí penso que conheço Maria. Mas Maria é uma outra coisa. É essa coisa de fazer enciclopédia, botar todos os nomezinhos lá. Quando aparecer um nome novo, fazer mais um volume pra completar a teoria. Catalogar, né. O que acontece na realidade, Walter, é o seguinte, é que a bossa nova ficou tão famosa que agora tudo que eu faço eles chamam de bossa nova. Mas não é bossa nova. Ou então é bossa nova, mas não é aquele sambinha bossa nova do João Gilberto. Não é isso. É uma coisa que tem bossa e é nova. Só que não é a bossa nova. A bossa nova, vamos dizer, é uma coisa que ficou rotulada mesmo. (cantarolando) 'Dia de sol / festa de luz / e um barquinho a navegar'. Então ficou o barquinho, o barquinho é a bossa nova. O "Desafinado" é bossa nova. "Garota de Ipanema" é bossa nova. Agora, você pega esse disco Antonio Brasileiro, o "Samba de Maria Luiza" não é bossa nova, o "Meu Amigo Radamés" não é bossa nova, "Radamés Y Pelé" não é bossa nova. Mas eles chamam de bossa nova. Americano vai chegar lá e dizer 'the bossa nova, não sei o quê'. O papa da bossa nova... Vai chamar o João Gilberto de papa da bossa nova. Mesmo que João Gilberto grave Gershwin, como já gravou, né. (cantarolando) 'It's wonderful...' Eles vão dizer que é bossa nova. É por causa da força e repetição das palavras. Aí, ficam repetindo, repetindo, repetindo... E falaram que a minha banda era nepotista, que havia o nepotismo e a inadimplência. Até hoje estão falando isso. Nepotismo é um sujeito que é funcionário do governo, e bota pra trabalhar os sobrinhos, os netos, os parentes... Não é nada disso. Na minha banda eu contrato quem eu quiser. Contrato o cachorro que estiver passando na rua, eu contrato ele pra gravar comigo. Não tem nada de nepotismo. Mas aí fica repetindo, nepotismo, nepotismo, nepotismo... Aí o sujeito vai falar 'olha, a banda do Tom Jobim, é nepotista'. E quanto às famílias que estão lá não é só a família Jobim, é a família Caymmi, a família Morelenbaum. Estão esquecendo-se das outras porque tudo leva a uma ideia, só que cria aquele nazismo, aquele troço inflexível.
Qualis - O fato de você trabalhar com a tua e as outra famílias significa uma facilidade de trabalho?
Tom - É, claro. Eles estão mais perto. O pessoal da minha família tá aqui em casa, então eu não preciso ir lá no Meyer. O Tião Neto, por exemplo, o contrabaixista, é de Niterói. O Paulinho Braga é mineiro de uma cidade chamada Guarani, ali perto de Juiz de Fora. Então, eles vêm de mil cantos do país. O Danilo Caymmi é filho de uma mineira de Piqueri, o Dorival Caymmi que é baiano. Você tem um espectro amplo.
Qualis - É a amizade entre as pessoas...
Tom - Claro, claro. O Danilo, por exemplo... Esse pessoal todo da banda. Essa banda é uma banda didática. Eu aprendo muito com eles, e eles aprendem comigo. Eu vi o Danilo nascer, né. Todo esse pessoal, eles eram criancinhas. Esse pessoal da banda são grandes músicos evidentemente. E as garotas também. As garotas têm sofrido mil críticas.
Qualis - Você já tinha usado um naipe de vocais femininos em Passarim...
Tom - Eu não gosto, por exemplo, de ficar sozinho, cantando sozinho. Não gosto de ficar em pé num palco com vinte mil pessoas me olhando. Acho essa situação muito desagradável. O vocal nas vozes é justamente o que cria a harmonia, que cria tudo. O coral é uma coisa sinfônica. Mas eu acho que o pessoal fala negócio de mulher, não sei o quê, é por outros motivos. (rindo) Eles estão com a cabeça em outras coisas.
Qualis - Motivos menos musicais.
Tom - É, motivos menos musicais. Essa leitura é estranha, né. E você vê, a Paulinha Morelenbaum canta muito bem, já gravou o disco dela. A Maucha canta muito bem. Esse disco você vai ver no exterior como eles vão elogiar as garotas.
Qualis - E tem essa coisa do Quarteto em Cy que é fantástico...
Tom - Eu gravei recentemente com elas. É porque esse negócio de dizer que o Tom Jobim não grava há sete anos, tô todo dia gravando com o Edu, com o Chico Buarque, com o Quarteto em Cy, Frank Sinatra. Mas só que isso não é muito mencionado porque eles querem saber do disco, como é o disco... Músicas inéditas, ou você não faz mais nada. 'Acabou, acabou, agora felizmente acabou'. Eu encontrei um sujeito na rua que falou assim: 'O Vinícius, ele não faz mais nada', e ele tava contente.
Qualis - É como dizem do Dorival Caymmi, que ele é um cara que não sai da rede, que não compõe mais nada...
Tom - Não sai da Rede Globo. (risadas) O Dorival... Você acha que um sujeito aos oitenta anos tem que compor? Perguntou ao Villa-Lobos uma moça que era mal paga, estudava na PUC jornalismo, perguntou ao Villa-Lobos que tava morrendo: 'Maestro, o que o senhor está compondo agora?' Ele disse: 'Agora eu estou decompondo' (gargalhadas). Mas porque essa obrigação de compor sempre? Eu nunca entendi isso bem. E as músicas inéditas, eu vou mantê-las inéditas pra que ninguém possa saber. Ninguém possa achar nada. Senão eles acabam pondo as músicas obscenas, os hinos do clube de futebol, acabam botando tudo, fazendo disco, você sabe. Os poemas eróticos do Drummond, por exemplo, eu não sei se ele gostaria... Não sei, duvido. E depois só se vê bem com o coração. O que acontece é que fica esse negócio de 'Olha lá ele! Tá com uma barriga! A roupa... O chapéu tem uma aba curta!' Não adianta. O robe de chambre do Wagner se era púrpura ou se era roxo. Fica exatamente o que não é, o que não interessa.
Imagens: Internet
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