sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Um Rio de Janeiro de outras paisagens

Outra crônica carioca de todos os tempos,  de J.G. de Araújo Jorge, em que podemos passear por um Rio de Janeiro de outros tempos.

José Guilherme de Araújo Jorge , mais conhecido como J. G. de Araújo Jorge, foi um poeta e político brasileiro.Nascido no Acre, no Rio de Janeiro realizou curso secundário nos colégios Anglo-Americano e Pedro II e colaborou, desde menin,o na imprensa estudantil. Inclusive foi fundador e presidente da Academia de Letras do Internato Pedro II, no velho casarão de São Cristovão. Foi conhecido como o Poeta do Povo e da Mocidade, pela sua mensagem social e política e por sua obra lírica, impregnada de romantismo moderno, mas às vezes, dramático.


 Um Rio de Janeiro da Bela Época
"A minha geração também poderia falar de uma belle époque. 

Nossa formação literária vinha de escritores que vivem ou participaram desse período. Julio Verne, Pierre Loti, Rostand, Zola, Heredia, Maupassant, Anatole France, Proust, cada um contriuiu com seu traço pessoal para aquela paisagem do espírito batizada com o nome vago de art nouveau. Ainda agora leio nos jornais que Carlos Maul vai publicar um novo livro: O Rio da Bela Época. Ele próprio esclarece o título da obra: “Era assim que na Europa, no princípio do século, se denominava o período entre 1898 e 1914, quando a humanidade parecia feliz e despreocupada, e não pressentia que a guerra a surpreenderia. 

O Brasil também pagou seu quinhão à calamidade, mas não tanto como os países devastados. Por isso, nossa “bela época” durou de 1900 a 1930.” Eu prolongaria essa data por mais alguns anos. 

Minha geração ainda vislumbrou as suas últimas claridades. Em que pese as agitações políticas que refletiram posteriormente as lutas dos extremismos na Europa, vivíamos aqui, literariamente, como se fossemos uma longínqua província onde não tinham chegado as perturbações da metrópole. Adolescentes, acordando para as letras, pertencemos ao tempo dos “cafés sentados”, os “cafés literários”, quando se tinha mais tempo para perder.

 Ainda se fará um dia a crônica dessa fugaz belle époque dos cafés do Rio de Janeiro. Primeiro, o velho Belas-Artes, na esquina da Avenida com a Rua Almirante Barroso. Lá nos reuníamos -a novíssima geração-, em longos “papos”, nos fins das tardes, a propósito de tudo. Joaquim Ribeiro, que ampliou, no tempo, a inteligência e a obra do pai, João Ribeiro, Joaquim, talvez a maior cultura de nossa geração; Guilherme Figueiredo, então ainda e apenas o poeta de “um violino na sombra”; Edmundo Moniz, também poeta, engolfado sempre em estudos políticos e sociólogos; Odilo Costa Filho, recém-chegado do Norte; Henrique Carstens, poeta desaparecido; Augusto Rodrigues, que apenas começava seus desenhos, seus primeiros bonecos; Jair, figura exótica, com seus estranhos bigodes, extraordinário desenhista, autodidata, o penúltimo boêmio autentico que conheci (o último foi Antônio Maria, o pastor das madrugadas); Garibaldi, então pintando interiores do Mosteiro de São Bento, em fase mística, e que se perderia durante anos por Paris. 

 Lembro-me de uma tarde, ao chegar ao grupo que rodeava a mesa, repleta de xícaras vazias, transformadas em cinzeiros, Joaquim Ribeiro, antes que me sentasse, me apresentou a um novo companheiro: – Araujo Jorge, este aqui é o Josué Montelo. Acaba de chegar do Maranhã Reverente, sacudindo ainda o pó das sandálias, Josué levantou-se, humilde e cordial: – Araujo Jorge? J.G.? Admiro-o muito. Seu nome é muito conhecido em minha terra, não só pelos seus livros como pela colaboração no Correio da Manhã. 

E enquanto me sentava a seu lado, foi logo retirando do bolso um trabalho: – Gostaria de ouvir sua opinião. Era um artigo sobre Celso Vieira. Um belo artigo, por sinal. Disse-lhe minha impressão e me referi à sua letra, miúda, muito certa, que me lembrava a de Coelho Neto, que eu conhecia de vários manuscritos. Alguns momentos depois, levantou-se e se despediu. 

Quando Josué saiu, Joaquim voltou-se para nós da mesa, e com aquele espírito e senso de humor que o caracterizava, sem nenhuma maldade: – O Josué trouxe quarenta artigos prontos, um sobre cada acadêmico. Vocês vão ver, enquanto nós vamos continuar aqui na “academia” do Belas-Artes, ele acaba na Academia. 

O Café Belas-Artes foi realmente nossa “academia” durante alguns anos. Na esquina seguinte, frente para a antiga Galeria Cruzeiro, era o Café Nice, ponto de reunião de cantores, músicos, compositores da velha-guarda. Eram dois mundos que não se misturavam. Quando instalaram a Caixa Econômica no local do Belas-Artes, levantamos vôo e fomos pousar na Cinelândia.

 Iniciava-se a fase do Café Amarelinho. 

O café existe até hoje, mas perdeu definitivamente aquelas características de QG literário. O mesmo grupo do Belas-Artes estava agora acrescido de outros elementos, alguns mais velhos, de outras gerações. Era comum, nas cadeiras de palhinha, na calçada, encontrarmos Murilo Araújo, Álvaro Moreira, Mário de Andrade, (quando de passagem pelo Rio), Raquel de Queirós, José Lins do Rego, Portinari, Graciliano Ramos, Jorge de Lima. 

Uma tarde fui apresentado a Julio Salusse, o poeta de Os Cisnes. Jorge de Lima tinha consultório no mesmo edifício do café e era o médico dos escritores e artistas do Amarelinho. Hoje, depois de tantos anos, só lastimo não ter me aproximado do Jorge, participado mais de sua convivência. O grande poeta me pareceu sempre esquivo, silencioso, distante. No mesmo edifício ficava também a redação de Dom Casmurro, o jornal literário de Brício de Abreu. Quem desejar escrever a história dessa época terá que consultar as coleções de Dom Casmurro. 

Lembro-me que, na ocasião, um nome novo se projetava ? Joel Silveira, que acabara também de chegar do Norte, e que à maneira de Sergio Porto, depois lírico e satírico, tirava do dia-a-dia da vida da cidade a substância de suas crônicas. No Amarelinho, reuniam-se ao nosso grupo jovens músicos cheios de idealismo e de planos. Eleazar de Carvalho e José Siqueira são velhos amigos, com quem troquei muitas vezes idéias. Eu estivera na Alemanha, freqüentara a Filarmônica de Berlim, então sob a regência de Furtwaengler, fora a Bayreuth, assistira a Wagner em seu teatro, e muitas vezes lhes sugeri a criação de nossa Orquestra Sinfônica Brasileira, da qual Álvaro Ladeira, cronista de arte, outro amigo, foi secretário por muitos anos. 

Falar do Amarelinho é recordar nomes e amigos, poetas, romancistas, jornalistas, pintores, compositores, caricaturistas, cuja convivência, nessa época, enriqueceu de lembranças minha memória: Armando Pacheco, eram dois, o pintor e o jornalista; os Condes, Mendes, Alvarus, Wilson W. Rodrigues, D’Almeida Victor, Cursino Rapôso, Paulo Mac-Dowell, Nélio Reis, Nélson Ferreira, alguns desaparecidos, como Osório Borba, Augusto de Almeida Filho, Amadeu Amaral Júnior, Martins Castelo. Era a minha geração. Não ficou marcada cronologicamente: de 35 ou de 40 -Mas teve seu tempo, foi bem um prolongamento do que se poderia chamar a belle époque. 

 Como poetas, apenas dois nos fixamos: eu e Vinicius de Morais. Os outros perderam-se na vida, e, distraídos da poesia, enveredaram por múltiplos atalhos. Que sejam felizes! "

 Fonte: J G de Araujo Jorge. “No Mundo da Poesia ” Edição do Autor -1969



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