segunda-feira, 20 de abril de 2020

Ontem como hoje?



Gripe espanhola: caipirinha é inventada como remédio, morte do ...

Tendo contaminado mais de 500 milhões de pessoas (ou quase 27% da população mundial na época) e fazendo até 100 milhões de mortos (perto de 5% da população global), a GRIPE ESPANHOLA foi uma das pandemias mais letais da história da humanidade.

Esta praga marcou a infância do então menino NELSON RODRIGUES. 

Com 6 anos à época, morador da Aldeia Campista, zona norte do Rio de Janeiro, o futuro escritor vivenciou com seus olhos de criança a transformação da cidade, a mais atingida no país pela gripe. 

Quando em 1967 começou a escrever suas memórias, em crônicas diárias para o jornal Correio da Manhã, essas lembranças foram abordadas em vários trechos, em especial nos capítulos XI e XII, publicados em 8 e 9 de março. Confira este excerto:



" E quem não morreu com a Espanhola?
A gripe foi justamente a morte sem velório. Morria-se em massa. E foi de repente. De um dia para o outro, todo mundo começou a morrer. Os primeiros ainda foram chorados, velados e floridos. Mas quando a cidade sentiu que era mesmo a peste, ninguém chorou mais, nem velou, nem floriu. O velório seria um luxo insuportável para os outros defuntos… 
Durante toda a Espanhola, a cidade viveu à sombra dos mortos sem caixão.
Morrer na cama era um privilégio abusivo e aristocrático. O sujeito morria nos lugares mais impróprios, insuspeitados: na varanda, na janela, na calçada, na esquina, no botequim. Normalmente, o agonizante põe-se a imaginar a reação dos parentes, amigos e desafetos. Na Espanhola não havia reação nenhuma. Muitos caíam rente ao meio-fio, com a cara enfiada no ralo. E ficavam lá, estendidos, não como mortos, mas como bêbados. Ninguém os chorava ninguém. Nem um vira-lata vinha lambê-los. Era como se o cadáver não tivesse nem mãe, nem pai, nem amigo, nem vizinho, nem ao menos inimigo. 

A forma de lidar com os corpos era igualmente aterradora. “Vinha o caminhão de limpeza pública, e ia recolhendo e empilhando os defuntos. Mas nem só os mortos eram assim apanhados no caminho. Muitos ainda viviam. Mas nem família, nem coveiros, ninguém tinha paciência. Ia alguém para o portão gritar para a carroça de lixo: ‘Aqui tem um! Aqui tem um!’. E, então, a carroça, ou o caminhão, parava. O cadáver era atirado em cima dos outros. Ninguém chorando ninguém. 

Se os próprios familiares não mais tinham ânimo para rituais, os carregadores muito menos. Nem para esperar o desfecho da morte. E o homem da carroça não tinha melindres, nem pudores. Levava doentes ainda estrebuchando. No cemitério, tudo era possível. Os coveiros acabavam de matar, a pau, a picareta, os agonizantes. Nada de túmulos exclusivos. Todo mundo era despejado em buracos, crateras hediondas. Por vezes, a vala era tão superficial que, de repente, um pé florescia na terra, ou emergia uma mão cheia de bichos. 

De repente, passou a gripe. Com o fim da gripe as coisas não mais foram as mesmas. A peste deixara nos sobreviventes não o medo, não o espanto, não o ressentimento, mas o puro tédio da morte. 
Lembro-me de um vizinho perguntando: ‘Quem não morreu na Espanhola?’. E ninguém percebeu que uma cidade morria, que o Rio machadiano estava entre os finados. Uma outra cidade ia nascer. 
Logo depois explodiu o Carnaval. 
A pandemia passou e, no Brasil, o Carnaval de 1920 representou um desafogo e a euforia geral tomou conta da população. 
E foi um desabamento de usos costumes, valores, pudores. 
Exatamente como antes." 

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