Bela, pioneira e do bar, Nair de Teffé, nascida na Petrópolis em 10 de junho de 1886, transgrediu tudo o que podia com toda a naturalidade do mundo. Filha da aristocracia brasileira, mais precisamente do Barão de Teffé, Nair foi educada na Europa durante a infância e parte da adolescência e sua aptidão para o desenho desponta logo aos nove anos de idade. Em sua biografia, a artista relata que fez uma caricatura de uma das freiras professoras do convento de Saint Ursuline, onde estudava; para Nair, a mulher tinha um nariz comprido bom para ser desenhado. A travessura foi descoberta pela madre superiora e a pequena ficou de castigo em um quarto escuro por oito horas sem pão e chocolate.
A dose se repetiu em casa, ao receber a visita de Madame Carrier, amiga da família. Nair foi obrigada pelas boas maneiras a ouvir a senhora falar por quase duas horas sobre cozinha, tema que a artista detestava e que gerou uma de suas frases marcantes: “a única coisa que gosto da cozinha é a comida”. Após a visita indesejada, Nair correu para o quarto e fez uma caricatura daquela que a importunava. Dessa vez, mostrou aos pais e o resultado da arte foi ficar sem sobremesa no jantar como forma de repúdio à indisciplina.
Percebendo as habilidades da filha, o Barão de Teffé a incentivou. De volta ao Brasil, com 19 anos, Nair de Teffé pintava, desenhava, tocava piano e falava seis idiomas, como era esperado das jovens da elite brasileira – afinal, era preciso se mostrar prendada para o futuro marido, porém ela não se importava com as convenções sociais.
Nair foi a primeira mulher no Brasil a usar calças compridas, peça tida exclusivamente como do vestuário masculino; também montava a cavalo com as pernas abertas, o que era inconcebível para uma dama, que deveria posicionar as duas apenas de um lado da montaria; tocava violão, instrumento sinônimo de boemia e cujo porte nas ruas poderia render voz de prisão por vadiagem; criou a “Troupe Rian” para encenar peças teatrais com o objetivo de angariar fundos para a construção da Catedral de Petrópolis e beneficiar obras sociais; e, por último, seu feito mais conhecido foi ser a primeira caricaturista mulher do Brasil (e talvez do mundo).
Durante sua mocidade no Brasil, Nair animava bailes e saraus da alta sociedade petropolitana com suas caricaturas. No início, eram desenhos de suas amigas e pessoas próximas à família, para evitar problemas e possíveis constrangimentos. A partir de 1906, os burburinhos a respeito das ilustrações de Nair começam a correr na Pensão Central, um dos pontos de elegância da cidade de Petrópolis, e a artista passa a receber encomendas de caricaturas, chegando a desenhar até 20 retratos em um único dia. Com o aval do pai, a jovem caricaturista pôde expor seus trabalhos na Chapelaria Watson e na Casa Davi, ambas no Rio de Janeiro.
A brincadeira de salão ultrapassou as paredes dos saraus e foi parar na imprensa. Nair de Teffé tornou-se conhecida ao retratar a artista francesa Réjane para a revista “Fon-Fon!“ em 1909. Com toda essa atenção voltada para uma figura feminina em um meio predominantemente masculino, Nair teve que se ocultar no pseudônimo de “Rian”, uma saída ardilosa, já que refletia seu nome ao contrário e lembrava sonoramente a palavra “rien”, “nada” em francês.
Exposição das caricaturas de Rian em 1912,
documentada pela revista “Fon-Fon!”
Nair teve suas caricaturas publicadas nas revistas “Fon-Fon!”, “O Malho”, “Revista da Semana” e “Vida Doméstica”, além dos periódicos “O Binóculo”, “Gazeta de Notícias”, “Gazeta de Petrópolis” e “A Careta”. Seus desenhos também chegaram em Paris pelas publicações “Le Rire”, “Fantasio” e “Excelsior”, tendo sido convidada pelo diretor da última, Pierre Láfitte, para tornar-se colaboradora fixa e residir em Paris. Entretanto, o pai de Nair a impediu alegando estar velho e doente. Apesar de ser incentivada no ofício da caricatura pelo Barão de Teffé, a jovem ilustradora não podia receber pelos trabalhos. Afinal, fazer dessa atividade fonte de renda significaria maior liberdade financeira para a mulher e redução do controle parental sobre a vida da filha, criada para se educar visando um excelente casamento.
Com a fama de caricaturista, Nair de Teffé conta, em entrevista ao Estadão, em 1979, que passou a ser recebida nos salões “com muita desconfiança pelos homens e com medo pelas mulheres, que por muitas vezes se escondiam atrás dos finos leques”. Os pais também a aconselharam que deixasse a caricatura de lado com medo de que a filha fosse odiada, mas isso nunca a intimidou. Nos traços de Rian, a artista desafia a ordem estabelecida.
Em suas portrait-charges, caricaturas individuais que se concentram na figura humana sem preocupação com o fundo da cena, a artista mostrava mais que as personalidades da elite: Nair fazia críticas sutis àquela sociedade que escondia as mulheres debaixo de chapéus luxuosos e extravagantes, à maneira de viver e agir do período, além de incomodar alguns políticos não só com seus retratos caricatos, mas com suas atitudes. Os amigos de Teffé transformavam a expressão latina “ridendo castigat mores” (“rindo castigam-se os costumes”, tradução livre) em “Riant castigat mores”, uma brincadeira com o pseudônimo da artista, que por meio da caricatura castigava os costumes daquela sociedade
Primeira-dama moderninha
Para sua coleção de primeiras vezes, Nair soma a de primeira-dama que tocou música popular no Palácio do Catete. Aos 27 anos, Nair de Teffé se casou com o marechal Hermes da Fonseca — presidente, 30 anos mais velho e recentemente viúvo, tríade de elementos que funcionou como prato cheio para a imprensa. Somado a isso, os filhos do marechal não compareceram à cerimônia.
A fama das caricaturas e do comportamento de Nair a precediam, o que lhe rendeu a alcunha de “primeira-dama moderninha”. A artista frequentava o Bar do Jeremias, reduto de boêmios, músicos, intelectuais e local proibido para mulheres, ainda mais para uma primeira-dama. O gosto de Nair pela música popular nunca foi segredo e em um dos recitais no Palácio do Catete, residência presidencial, ela tocou no violão ao lado de Catulo da Paixão Cearense (1863-1946), o maxixe “Corta Jaca” composto por Chiquinha Gonzaga (1847-1935). O episódio foi um prato cheio para Rui Barbosa, opositor de Hermes e ferrenho crítico de Nair, que já fazia caricaturas do político:
(Discurso proferido por Rui Barbosa em novembro de 1914)
Em entrevista ao Estadão, a caricaturista compartilha que Rui Barbosa já foi à tribuna dizer que se sentia ofendido pela “meninota Nair” e que deveria existir uma lei de proteção às figuras importantes como ele. Após o discurso, Nair preparou uma série de caricaturas do político que foram disputadas pelos jornais e revistas da época.
Infelizmente, a produção de Nair não continuou durante o restante do mandato de seu marido, apesar da promessa do mesmo quando o pedido de casamento foi feito: “Quando Hermes me pediu em casamento eu aceitei com a condição de continuar meu trabalho. Ele não só concordou com a minha proposta, como também se prontificou a carregar a minha maleta de trabalho se eu precisasse”, relata Nair ao Estadão.
Assim que o mandato de Hermes da Fonseca terminou, Nair retornou à Europa para tratar um problema no quadril resultante de uma queda. Retornou ao Brasil em 1921, chegando a tempo de participar da Semana de Arte Moderna de 1922. Após o falecimento de Hermes, em 1923, Nair volta a morar em Petrópolis em 1928 e é eleita presidenta da Academia de Ciências e Letras, mais tarde transformada em Academia Petropolitana de Letras. Entrou para a Academia Fluminense de Letras em 1929 e também foi presidenta da instituição.
Com a morte dos pais em 1930, Nair trocou Petrópolis pelo Rio de Janeiro. Sempre cercada por figuras masculinas, ora o pai, ora o marido, que impediram sua independência financeira, a artista agora se via sozinha como gestora da herança familiar. Ela perdeu boa parte do dinheiro no Jogo do Bicho, mas mesmo assim conseguiu um empréstimo na Caixa Econômica Federal para erguer em Copacabana o Cine Rian, cinema que resistiu até 1983, sendo demolido posteriormente.
SAIBA MAIS SOBRE O CINE RIAN no post... AQUI
No auge de seus 70 anos, Nair de Teffé volta a fazer caricaturas de figuras políticas como Jânio Quadros, Juscelino Kubitschek e Fidel Castro. Quando completou 95 anos, Nair faleceu no dia de seu aniversário, tornando-se referência não só como primeira mulher caricaturista, mas como uma mulher que não se submeteu às imposições socioculturais da época, nem quando ocupou o posto de primeira-dama.
que estoria incrivel e rocambolesca!
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