Encerrando nosso passeio pela Semana Santa de outros tempos...
Pintura de Debret
"A Quaresma foi encerrada com o Sábado de Aleluia, que é também chamado de Dia de Judas, por causa do saliente papel que ele tem nessa data e da vingança que o povo faz contra ele. Essas comemorações são geralmente comparadas às realizadas na Inglaterra no Guy Fawkes Day, mas na realidade não há a menor semelhança entre as duas festas. Originalmente, a daqui foi concebida como uma cerimônia solene, semelhante às outras procissões religiosas, mas agora transformou-se em folguedo, servindo de veículo para todo tipo de sátira. Sem dúvida, constitui uma curiosa e interessante mostra dos costumes e modo de pensar dos brasileiros.
Ao sairmos de casa por volta da dez horas, vimos que as ruas principais da cidade exibiam vários bonecos, alguns dependurados nas árvores, outros suspensos na ponta de um pau, todos em tamanho natural, caprichosamente vestidos e em grande estilo, ora isolados, ora em grupos, todos ligados uns aos outros e todos com cartazes em verso dizendo o que eles representavam. As principais figuras eram Judas e o Diabo, havendo uma grande variedade de dragões e de serpentes, todos recheados de bombas e ligados uns aos outros para explodirem em série. Na confluência de quatro ruas via-se um gigantesco Satã cercado de diabinhos, todos voltados para o infortunado Judas, sobre o qual deveriam avançar a um determinado sinal, arrebatando-o dali entre labaredas de fogo.
Além da figura de Judas, que tinha várias formas e era rodeada por diferentes emissários do inferno, havia muitas outras, que não tinham nenhuma relação com o seu castigo e representavam sátiras a pessoas ou situações. Algumas não tinham a menor ligação com ele; uma delas era dirigida contra as mulheres. Consistia num gato imenso, de ar muito pudico, com os seguintes versos pregados em sua base, que foram lidos alegremente por alguns cavalheiros postados a uma janela para algumas damas debruçadas na janela oposta:
"Serei gato ou serei gataSerei o que vós quiséreisPorém sou na arranhaduraBem semelhante às mulheres."
Outra era dirigida contra os homens. Era a figura de um soldado romano segurando uma lanterna, com o qual parecia procurar alguém. Embaixo, liam-se os seguintes versos:
"Sou Marcos, vou de lanternaSem luz para assim ver bemSe tu só serás o JudasOu se é Judas mais alguém."
Havia algumas sátiras que não eram de caráter geral e sim dirigidas a uma pessoa em particular. Uma das figuras se achava caprichosamente vestida, aparentando ser um desembargador ou advogado. Tinha um ar grave e uma aparência bastante plausível, de terno preto, chapéu de dois bicos e óculos; trazia na mão um livro, que parecia ler atentamente. A figura se achava colocada bem defronte da casa de um conhecido desembargador, cuja honestidade deixava muito a desejar, e era uma cópia exata dele. Embaixo viam-se os seguintes versos, lidos com deleite pelo povo:
"Este Festo grave e sérioNão enculca probidade;Pois talvez que agora penseN’alguma perversidade."
Diante da porta de um comerciante inglês havia dois bonecos, extremamente semelhantes a ele a sua mulher. Tratava-se de duas pessoas sérias, e suas roupas foram caprichosamente reproduzidas, principalmente a touca da senhora, que era uma cópia perfeita da que ela usava; ela apareceu à janela, e não se podia negar que a semelhança era extraordinária. O casal tinha despertado a ira dos brasileiros – pelo que me disseram – porque havia protestado contra aquelas manifestações, que classificaram de idolatria papista, e particularmente porque se recusara a dar qualquer contribuição para as festas. Que eu saiba, foram os únicos ingleses naquela rua que agiram assim. Os dizeres junto às figuras, embora muito engraçados, eram intraduzíveis, e a maneira como elas foram apresentadas era de um humor muito rude para ser descrito.
Estabelecemos nosso posto de observação numa janela da rua Direita, de onde tínhamos uma vista excelente de toda rua, que passarei a descrever especialmente para você, para lhe dar uma idéia do que ocorria em toda a sua extensão. A ampla rua era quase toda ela orlada por fileiras de palmeiras, formando uma aprazível avenida. Os troncos das palmeiras estavam ligados uns aos outros por cordas recobertas de flores, funcionando como um cordão de isolamento, por trás do qual o povo ficava postado.
Das sacadas também partiam cordões enfeitados de flores, que iam até as sacadas do lado e se cruzavam no meio, dos quais pendiam potes pintados, de diferentes feitios e tamanhos e com algo dentro deles, o que aguçava a curiosidade do povo. Entre um pote e outro via-se uma grande variedade de bonecos de tipos variados, todos com dizeres e vestidos em grande estilo. Tudo isso, completado pelo desfile de silenciosos mascarados, compunha um espetáculo extremamente divertido. Entre os bonecos, Judas era o que se achava colocado em lugar mais elevado e visível. Estava pendurado num galho de uma alta árvore, vestido com um manto branco, e mais acima, perdido no meio da ramagem e pronto a saltar sobre eles, estava Satã.
A cerimônia religiosa do dia começou nas igrejas, e quando chegou à parte em que a Aleluia começa a ser cantada é dado o aviso na rua por meio de foguetes. Esse é o sinal para começar a festa. Imediatamente os sinos se põem a tocar, a banda rompe num dobrado e explode o foguetório.
Primeiro, Satã desce rapidamente do alto da árvore, agarra o corpo de Judas, e logo os dois são envoltos em chamas, com fogos de artifício de curioso efeito correndo por seus braços e pernas; por fim, de acordo com o que diziam os versos afixados embaixo, a barriga de Judas explode, espalhando o seu conteúdo por toda parte; a multidão recolhe tudo como troféu, enquanto os dois bonecos vão sendo consumidos pelo fogo. A seguir, as figuras do casal inglês são incendiadas, fazendo macaquices uma para a outra, de uma forma que não sei descrever, e andando à roda de uma maneira muito curiosa. E assim, sucessivamente, todos os bonecos pegaram fogo, enquanto faziam evoluções de acordo com a sua condição, até serem todos reduzidos a cinzas.
O centro da rua foi então evacuado, surgindo em seguida numerosos cavaleiros armados de lanças, com seus escudeiros. Depois de desfilarem pela arena para baixo e para cima, eles foram postar-se atrás de uma barreira situada no final da rua. A um sinal, a barreira caiu e um dos cavaleiros avançou velozmente, de lança em riste, contra um dos potes suspensos e o partiu ao meio. De dentro dele caiu um leitãozinho, e a multidão avançou sobre ele; o primeiro que o agarrasse seria o dono.
O segundo cavaleiro atacou outro pote, de onde despencou um macaco; e o povo correu para pegá-lo, mas o macaquinho era ágil demais e escapou, subindo por um dos cordões e vindo parar em nossa janela. Dessa maneira, todos os potes foram quebrados sucessivamente, tendo saído deles um grande lagarto, um gato e uma variedade de coisas. Contudo, um pote permaneceu intacto. Todos os olhos estavam voltados para ele, mas nenhum dos cavaleiros parecia disposto a atacá-lo. Finalmente, um mais destemido do que os outros avançou contra ele e... pernas para que te quero. De dentro do pote saiu uma nuvem de marimbondos que envolveu todos nós e atacou com fúria todos os que se achavam ao seu alcance. A rua inteira era agora um mar de lenços brancos ondulantes, todo mundo defendendo o próprio rosto de um punhado desses ferozes atacantes.
Durante todo o desenrolar do espetáculo a polícia esteve presente, com o Intendente a cavalo, em uniforme de gala, andando para lá e para cá. Contudo, não houve aparentemente necessidade de sua interferência. A multidão mostrava-se muito alegre, mas bem comportada. Ninguém parecia interessado em ofender ninguém na disputa das coisas, a não ser quando, vez por outra, um pobre negro se extraviava e ia parar no meio da rua; todo mundo caía então sobre ele impiedosamente, aos tapas e pontapés, como se ele fosse uma coisa inteiramente indigna de piedade e consideração. Por volta de uma hora da tarde o espetáculo terminou. A multidão, como de hábito, deu início ao trabalho de destruir o que havia restado; as árvores foram destroçadas, o que restou dos bonecos foi tomado como troféu e nas ruas, de ponta a ponta, ficaram espalhados dos destroços da festa.
Esse espetáculo, que é de fato muito divertido e engenhosamente realizado, exerce uma singular e sempre crescente atração sobre os brasileiros, já que, exceção feita das procissões e da ópera, que é muito exclusivista, o povo não dispõe de entretenimentos públicos. Há nos festejos uma vulgaridade de comédia antiga, e o papel representado por alguns dos bonecos lembrava a cena do arlequim holandês e o moinho de vento, que as damas do Rio de Janeiro, à semelhança das de Roterdã, viam com grande interesse e prazer. As ruas rivalizam umas com as outras, na variedade e riqueza da decoração. Quando me retirei, ainda não havia sido decidido qual levaria a palma, se a rua Direita ou a da Quitanda. O dinheiro das despesas, obtido através de uma subscrição popular, totalizou doze contos de réis, dos quais a rua Direita despendeu quatro. Calculando-se os mil-réis a um dólar – como sempre fazem os brasileiros – teríamos quase mil libras de gastos numa rua.
Às quatro da manhã, no Domingo de Páscoa, a cidade foi despertada pelo espoucar dos foguetes nos céus e os tiros de canhão das fortalezas, que procuravam anunciar pelo brilho do fogo e o troar da artilharia a boa notícia da ressurreição de Nosso Senhor; imediatamente após, o Espírito Santo, que Ele prometera enviar, era exibido em diferentes partes da cidade. A caminho da igreja, às onze horas, vi algumas pessoas içando-o ao topo de um mastro todo enfeitado de guirlandas e fitas. Tratava-se de uma barreira vermelha, enfumada como uma vela e ondulando ao vento. No centro, de onde partiam vários raios, via-se a pomba descendo dos céus. Emblemas semelhantes foram içados no campo da Aclamação e em outros logradouros públicos. Em sua representação dos eventos da Sagrada Escritura, o povo não parece preocupar-se muito com a seqüência certa dos acontecimentos; segundo pude observar, os fatos se antecipavam, muitas vezes, e se confundiam com os outros."
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