sexta-feira, 24 de junho de 2016

Noite de São João





Um texto de Cruz e Souza (1861-1898) 
sobre a noite de São João, publicado em
 O tempo, no Rio de Janeiro,
em 25 de junho de 1891



"Noite de São João

Através das verdejantes colinas do Sul, a noite de São João tem a graça pitoresca de uma animada pintura, tornando vivo o clarão de amor das cousas adormecidas ou mortas nas recordações passadas.


Ora é numa beira de praia, ora é num trecho de rua que se passam essas cenas de costumes, esses episódios característicos, cheios de um encanto virgem, que afagam a nossa memória.

Desceu a noite já!

É num luar de junho.

As verduras, pulverizadas de luz, escorrendo prata líquida, nua crua irradiação branca, reluzem com a nitidez e brilho dos alvos flocos de neve.

Para lá da terra firme, além de uma curta divisa de mar manso, navegável em canoas, num ponto em que os olhos distingüem claramente bem, uma aragem fresca, leve, como um sopro musical de flauta campestre, afla nos canaviais viçosos que se agitam suavemente.

Porém, na rua, umas vozes cantantes, cheias de mocidade e frescura, gritam alto, sonoras:

– Olá João, anda cá! Hoje é teu dia. Viva São João! Viva São João!

E o João, um rapaz que passara assobiando, jovial, franco, na alegria da sua alma chã, entra numa venda, paga vinho – um vinho cor de topázio bebido entre a algazarra dos companheiros e os bruscos entusiasmos do taverneiro, que faz tinir as moedas, todo risonho, na gaveta do balcão.

- E as canas, João, e as canas! – repetem as vozes.

E o João paga de novo e de novo a algazarra cresce, os vivas, as aclamações, os prazeres acesos nas almas desses bons rapazes, como as bichas e os busca-pés que eles soltam nos largos, por troça, em meio de muita gente reunida, dispersando e alvoroçando tudo, entre galhofas e risadas.

Mas a noite de São João dobra de encantos e de enlevos.

Agora, fogueiras crepitantes estendem a sua ardente chama, loura e alegre, na frente das casas, dourando-as. Agora, a rapaziada, crianças saltam as fogueiras: velhos de cócoras ou sentados em redor contam uns aos outros histórias cabalísticas de bruxas e almas do outro mundo, e, aquecendo-se do frio da noite, esfregam confortavelmente as mãos, fazendo às vezes ressoar no claro ar sereno a nota cristalina de uma cantiga de ritmo simples, como motivo da festa, tremida e repinicada na voz, misteriosa e cheia de saudades amadas.

Agora são as novenas nos lares – as velhas novenas que de tão longe vêm na religião, como ainda um doloroso soluço atormentado dessa fanática e sonâmbula Idade Média…

Numa sala, ao centro de um altar armado em dossel, resplandescente de luzes, de alfaias, de jarras azuis e de flores, São João Batista, com o seu rosto roliço e doce, destaca, sorrindo, de um quadro de moldura dourada, em estampa, do fundo de um nimbo cinzento, cabeleira crespa, faces coloridas, abraçado ao cordeiro manso, que olha para a gente com os seus olhos pequeninos, plenos de docilidade e de paz.

E, depois da novena cantarolada numa lúgubre melopéia, a rapaziada cai na arrastação dos pés, e dança, gingano, com os voluptuosos requebros e bamboleios quentes da raça.

No intervalo das danças, bebe-se Carlsberg e comem-se belos bom-bocados saborosos que cocegam aperitivamente o céu da boca, e as brancas ou rosadas cocadas, em forma de estrela, que lembram a Bahia, tal é o paladar do coco de que elas são feitas.

No meio disso tira-se a sorte, num espécie de consulta ao destino: para saber se morrerá cedo ou tarde, se casará, se terá este ou aquele desejo. Passatempo esse que dá às pessoas que nele tomam parte um contentamnto e uma felicidade que iluminam as fisionomias, remoçando e fortalecendo a velhice e consolando de esperança a todos.

No fim desse contratempo e das últimas contradanças de grandes e frenéticos galopes, todo o mundo volta para casa, tarde bastante, no frio silêncio hibernal da longa noite já sem lua, mas estrelada, de uma amarelado tom esmaecido de madrugada cor de limão.

Nem mais um só ruído notável do prazer se escuta na rua.

Apenas, a essa alta hora, um ou outro foguete tardio, ao longe, aqui e ali, como esquecido elemento da festa ou indiferente conviva que chega tarde, estala e brilha no ar saudosamente."



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