Mais uma crônica carioca de todos os tempos...
"...As ruas da zona sul eram um silêncio, justamente quando o calendário, permissivo pela própria história, autorizava e chamava a alegria. A ditadura militar estava em seu primeiro ano e muitas tristezas se anunciavam. A cultura popular sofria os reflexos do difícil momento, do imprevisível, da censura incipiente. O esforço exigido para sua recuperação deveria ser multiplicado. A perspectiva da reconquista do espaço cultural, espaço de expressão, justificaria aquele esforço. No carnaval de rua não era diferente, para a sua recuperação seria necessário tentar. Juntar as pessoas e tentar.
Amigos – entre eles alguns fundadores da Banda de Ipanema – haviam visitado Ubá, em Minas Gerais, e conhecido uma de suas tradições locais: o desfile da Phylarmônica Em Boca Dura de Ubá, uma agremiação carnavalesca que desfilava pelas ruas da cidade, com seus integrantes cada um tocando, se assim se poderia dizer, um instrumento musical. O som resultante, nulo em harmonia, era todavia forte o suficiente para, com sua irresistível desarrumação melódica e extremo descompasso, despreocupadamente caótico, tornar-se hilariante, um desfile contagiante para todos. A cidade festejava sem parar. Essa experiência iria dar frutos.
Naquele início de fevereiro de 1965 perdurava o silêncio das ruas. O mesmo grupo de amigos, com outros mais, igualmente pioneiros, reuniu-se para preparar o que seria o anteprojeto da banda que iria estrear, duas semanas antes do carnaval, precisamente no sábado dia 13 de fevereiro. Naquele dia, cerca de 30 amigos estavam desfilando pelas ruas de Ipanema, a partir da Praça General Osório. Também eles tentavam, impunemente, à imagem de seus colegas inspiradores de Ubá, reproduzir algum som audível e compreensível em seus instrumentos. Inútil registrar o som, mas afirmava-se a alegria, e foi assim que ela desfilou em seus primeiros anos, enquanto possível conciliar os mestres amadores do som com os profissionais do ramo que lhes davam um mínimo indispensável de sustentação. Sim, porque em breve tempo a multidão era de tal ordem que não havia mais espaço para os músicos amadores. O carnaval de rua renascia na zona sul da cidade. Nascia e crescia a Banda de Ipanema, com a irreverência e o espírito democrático, únicos, que até hoje a caracterizam.
A Banda de Ipanema não inventou a alegria carioca. Desvelou-a apenas, desvendou-a para toda a cidade. Multiplicou-se, aberta ao povo, obra do povo. Uma banda em cada bairro, pregava uma de suas faixas, YOLHESMAN CRISBELES à frente. Ainda é assim.
Por que a Banda toca o Carinhoso em todos os seus desfiles, na esquina de Joana Angélica com Visconde de Pirajá?
No meio da tarde do dia 17 de fevereiro de 1973, sábado, ao início do 1º desfile da Banda de Ipanema – 2 (duas) semanas antes do carnaval, como é de nossa tradição – com a Banda já pela metade na Rua Prudente de Morais, formávamos um pequeno grupo, ainda na Praça General Osório, quando fomos surpreendidos por um menino que chegou correndo, esbaforido da Igreja N. Sra. da Paz e nos disse, assustado, da morte de Pixinguinha, pouco antes, durante um batizado do qual era padrinho, como viemos a saber logo após.
Fomos testemunhas da cronologia dos fatos: Pixinguinha morreu antes da passagem da Banda pela Igreja N. Sra. da Paz, antes mesmo do início de nosso desfile.
Ao sabermos da sua morte nossa primeira reação foi a de questionar se deveríamos cancelar imediatamente o desfile, já iniciado, mas ainda ao largo da Praça General Osório.
Entendemos que não havia mais como fazê-lo: era muita gente, o espaço já era longo para uma explicação dramática, decidimos, surpreendidos e tristes, seguir em frente, avisar a multidão quando possível, não subtrair de ninguém o pouco que àquela altura sabíamos e que já era muito. Bastava saber que não tínhamos mais nosso grande Pixinguinha.
A notícia espalhou-se com rapidez. Em breve tempo, no próximo quarteirão, debaixo de um grande e inesquecível temporal, praticamente todos já sabiam do fato.
Foi assim, sabedora, que a Banda, retornando à Visconde de Pirajá pela Rua Maria Quitéria, como fazíamos àquela época, iniciou seu percurso ao longo da Praça N. Sra. da Paz até aproximar-se da Igreja.
Naquele momento, no entanto, é que soubemos do corpo de Pixinguinha ainda presente em seu interior. A Banda parou defronte à Igreja – alguns amigos foram ver o Pixinguinha – e, em seguida, veio a ideia coletiva de homenagem à grande figura falecida.
Foi aí, então, que, pela primeira vez, a Banda tocou e o povo cantou, emocionado, o Carinhoso, em homenagem ao seu autor, gênio da Música Popular Brasileira, corpo presente ao lado.
Daí para a frente todos sabem: a Banda para, em todos os seus desfiles, na esquina da Rua Joana Angélica com Visconde de Pirajá, em retorno ao seu ponto de partida, na Praça General Osório. Nessa parada, tocamos e cantamos, todos, o Carinhoso, em ansiado ato de reverência a Alfredo da Rocha Viana Filho, o Pixinguinha, uma tradição da Banda de Ipanema que vai prosseguir, definitiva.
Salve Pixinguinha!
YOLHESMAN CRISBELES! "
Claudio Pinheiro
um dos fundadores da Banda de Ipanema
um dos fundadores da Banda de Ipanema
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