sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Machado de Assis e a Proclamação da República

Machado de Assis já era um escritor conhecido quando ocorreu o golpe que derrubou a monarquia e instalou a república em 15 de novembro de 1889. Tinha, então, 50 anos de idade e ocupava um alto posto no funcionalismo público da Corte. Isso deixava-o mais próximo dos fatos e, também, vulnerável às mudanças políticas. Além disso, ele era vizinho do Barão de Ladário, no Cosme Velho, ministro do Império e a única vítima da proclamação da República. Machado, contudo, nunca expressou claramente sua opinião a respeito do golpe mas deixou um relato cheio de ironia em seu romance Esaú e Jacó. Escrito em 1904, é uma das últimas e mais importantes obras de Machado de Assis, onde não deixou de tratar as questões de cunho político-social de forma profunda e ironicamente mordaz.

Tudo começa dias antes, quando 
“toda gente voltou da ilha com o baile na cabeça”,
referindo-se ao célebre Baile da Ilha Fiscal, 
ocorrido em 9 de novembro de 1889. 

Uma narrativa carregada de humor. Machado de Assis reduz a proclamação da República a uma simples troca de tabuletas, mudança só de nomes. República e Império se equivalem como rótulos de fachada.


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Tabuleta Velha (cap. 49) 
"Tôda gente voltou da ilha com o baile na cabeça, muita gente sonhou com êle, alguma dormiu mal ou nada. Aires foi dos que acordaram tarde; eram onze horas. (...) Fumou, leu, até que resolveu ir à rua do Ouvidor. Como chegasse à vidraça de uma das janelas da frente, viu à porta da confeitaria uma figura inesperada, o velho Custódio, cheio de melancolia. Era tão novo o espetáculo que ali se deixou estar por alguns instantes; foi então que o confeiteiro, levantando os olhos, deu com êle entre as cortinas, e enquanto Aires voltava para dentro, Custódio atravessou a rua e entrou-lhe em casa.(...)
- Vim para contá-lo a V. Excia; é a tabuleta.
- Que tabuleta?
- Queira V. Excia ver por seus olhos, disse o confeiteiro, pedindo-lhe o favor de ir à janela.
- Não vejo nada.
- Justamente, é isso mesmo. Tanto me aconselharam que fizesse reformar a tabuleta que afinal consenti, e fi-la tirar por dois empregados. A vizinhança veio para a rua assistir ao trabalho e parecia rir de mim. Já tinha falado a um pintor da rua da Assembléia.(...) Ontem à tarde lá foi um caxeiro, e sabe V. Excia a que me mandou dizer o pintor? Que a tábua estava velha, e precisa outra; a madeira não aguenta a tinta. Lá fui às carreiras. Não pude convencê-lo de pintar na mesma madeira; mostrou-me que estava rachada e comida de bichos. Pois cá de baixo não se via." 

"Pare no d."(cap. 62) 

"Na véspera, tendo de ir abaixo, Custódio foi à rua da Assembléia, onde se pintava a tabuleta. Era já tarde; o pintor suspendera o trabalho. Só algumas das letras ficaram pintadas, - a palavra "Confeitaria" e a letra "d". A letra "o" e a palavra "Império" estavam só debuxadas a giz. (...) Recomendou pressa. Queria inaugurar a tabuleta no domingo.
Ao acordar de manhã não soube logo do que houvera na cidade, mas pouco a pouco vieram vindo as notícias, viu passar um batalhão, e creu que lhe diziam a verdade os que afirmavam a revolução e vagamente a república. A princípio, no meio do espanto, esqueceu-lhe a tabuleta. Quando se lembrou dela, viu que era preciso lhe sustar a pintura. Escreveu às pressas um bilhete e mandou um caxeiro ao pintor. O bilhete dizia só isto: "Pare no D."(...)
Quando o portador voltou trouxe a notícia de que a tabuleta estava pronta.
- Você viu-a pronta?
- Vi, patrão.
- Tinha escrito o nome antigo.
- Tinha, sim, senhor: "Confeitaria do Império".
Custódio enfiou um casaco de alpaca e voou à rua da Assembléia. Lá estava a tabuleta (...) Custódio leu: "Confeitaria do Império". Era o nome antigo, o próprio, o célebre, mas era a destruição agora; não podia conservar um dia a tabuleta, ainda que fôsse em beco escuro, quanto mais na rua do Catete..." 

Tabuleta nova (cap. 63) 

- "Mas o que é que há? Perguntou Aires.
- A república está proclamada.
- Já há governo?
- Penso que já; mas diga-me V. Excia.: ouviu alguém acusar-me jamais de atacar o governo? Ninguém. (...) A tabuleta está pronta, o nome todo pintado. (...) V. Excia crê que, se ficar "Império", venham quebrar-me as vidraças? - Isso não sei (...) Mas pode pôr "Confeitaria da República"...
- Lembrou-me isso, em caminho, mas também me lembrou que, se daqui a um ou dois meses, houver nova reviravolta, fico no ponto em que estou hoje, e perco outra vez o dinheiro. (...)
Aires disse-lhe então que o melhor seria pagar as despesas e não pôr nada, a não ser que preferisse seu próprio nome: "Confeitaria do Custódio". (...) Um nome, o próprio nome do dono, não tinha significação política ou figuração histórica, ódio nem amor, nada que chamasse a atenção dos dois regimens, e conseguintemente que pusesse em perigo os seus pastéis de Santa Clara, menos ainda vida do proprietário e dos empregados. (...) Gastava alguma coisa em troca de uma palavra por outra, Custódio em vez de Império, mas as revoluções sempre trazem despesas.
- Sim, vou pensar, Excelentíssimo. Talvez convenha esperar um ou dois dias, a ver em que param as modas, disse Custódio agradecendo."

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