sexta-feira, 19 de março de 2010

Há 50 anos...

Essa crônica , publicada há exatos 50 anos, no dia 19 de março de 1960, na revista O Cruzeiro, é mais um post para a retranca Crônicas de todos os tempos, onde vale a pena ler e reler relatos de outros tempos, olhar como era nossa cidade, seu jeito, suas gírias. Ver e rever.

Era uma quarta-feira de cinzas, o boom do carnaval tinha sido a presença de...Kim Novak.


"Ninguém conhece ninguém
JOSÉ AMÁDIO

A Kim Novak do cinema é beleza bossa-nova. É um pêssego, como todo mundo diz. Admitamos que a imagem não é muito original, mas que fazer com a voz do povo? A diabinha exibe uma sensualidade serena, quase irreal, como se estivesse envolta em névoa. Altona, quase gordota, quando fala derrama sôbre o interlocutor o seu olhar verde-avelã e se o dito interlocutor não é firme das pernas, senhoras minhas, vai direitinho ao chão. É suave, sem ser adocicada. É mel, sem ser açucarada. Abelhas espirituais estão sempre esvoaçando em cima de seus atributos físicos.
- Mulher assim, só de cem em cem anos - dizem os entendidos.Por que não comentar!

Quando Rita Hayworth deixou a Califórnia, em 1952, ou 3, o estúdio ficou sem sua prima-dona, sem sua Gilda, Harry Cohn, o big-boss, massageou a careca e decidiu que precisava fazer uma nova estrêla. E assim despontou Kim Novak. Despontou porque já surgiu estrêla, de quantas pontas não sei. Dez, vinte talvez, ou setenta. Ela foi inventada para tapar buraco. Quando chegou a Hollywood (era modêlo nobremente desconhecido), sem nunca ter ouvido sequer falar na arte de representar, e a colocaram diante das câmaras para teste, um produtor exasperou-se:
- Ela é incapaz de recitar até mesmo o Hino Nacional!Dizem que Cohn interferiu:- Para quê? Basta olhá-la.
E tinha razão. O público do mundo inteiro passou a olhá-la . Depois de seis filmes, era a bilheteria n.º 1 dos Estados Unidos, a nova deusa.
Made in Hollywood.

Mulher bonita não precisa de história, assim como rosa não precisa de história, nem nuvem precisa, nem crepúsculo, nem pássaro, sem trigal maduro. Uma rosa, como disse aquela nossa amiga, é uma rosa. Uma Kim é uma Kim. Bem Novak. Uma rosa amarela. Para explicá-la não adianta ser psicólogo ou mestre de almas. Creio que só um botânico a compreenderia. Uma rosa ampla, farta, que desabrochou com violência e espalha suas pétalas sempre renovadas pelo mundo inteiro. Uma rosa para todas os ventos. Digo isso com serenidade, sem arroubos de marinheiro de segunda viagem. Depois que andei às voltas com Elizabeth Taylor, fiquei vacinado contra artistas de cinema. Consigo enfrentá-las sem me sentir canibal em jejum. Verdade, verdade, a mulher mais bonita que vi em minha vida foi certa adolescente alemã que vendia cogumelos à margem de uma auto-estrada, na Alemanha. Eu viajava num Volkswagen com Ed Keffel quando a vi, numa indecisa manhã de novembro. Foi um choque, uma emoção, uma pancada de luz.
Instante de beleza.

Nosso primeiro bate-papo aconteceu no apartamento de Harry Stone, o embaixador de Hollywood no Brasil. Era como se estivéssemos na cratera de um vulcão ativo. Pobre môça! Dezenas de fotógrafos, de cinegrafistas e caçadores de autógrafos, de mocinhos que querem aparecer ao lado dos cartazes. O programa de entrevistas e horários, que Mr. Stone elaborara britânicamente, foi brasileiramente conturbado. Todos queriam a môça ao mesmo tempo. Parecia bicharada. Ela se manteve amável até o fim, forçando sorrisos, mas deve ter pensado cobras e elefantes da nossa educação. Deve ter pensado tatus e tamanduás, também. Conseguimos encerrá-la num quarto do apartamento. Estava quase chorando. Mas nada reclamou contra a turba, a não ser uns discretos “uffs”. Mário Camarinha, com seu inglês de Berkeley, tentou consolá-la. Ela retocou a maquilagem, com mais alguns “uffs”.
E passou para a história.

De perto, é ainda mais impressionante. Se eu fôsse editor do Larousse, escreveria só isso: Kim Novak, môça bonita. A gente tem vontade de tomá-la por um canudinho, como se fôsse cajuada. Seu encanto é tridimensional, e como estamos no regime da bossa-nova, diria que seus gestos são quase estereofônicos. Afirma que se considera uma jovem simples porque consegue ser ela mesma no epicentro do ciclone que é sua vida. Gosta de publicidade, é claro, precisa dela, mas luta para não se deixar envolver fundamentalmente. Procura, às vêzes, a liberdade do anonimato de que goza uma garôta de Bangu, por exemplo. Ou de Montmartre. É uma espécie de Cleópatra com alma de balconista da Sloper. Consegue ser assim, quando não está diante das câmaras. Tem a suprema coragem de ser fiel a si própria e de conciliar essa fidelidade com o puritanismo vigente.
Se é que vocês me entendem.

Kim detesta fundamentalmente o artificialismo da vida social. Não gosta de grã-finos, de um modo geral. Diz que prefere contato com o povo, com a gente simples. Foi por isso que permaneceu apenas 45 minutos no Baile do Municipal (show absoluto) e saiu para as ruas com Jorginho Guinle, seu acompanhante no Brasil. De calça comprida e camisa folgada, entrou num bloco de sujos no Tabuleiro da Baiana. Sua grande máscara preta permitiu que aderisse (incógnita) ao grupo do sereno para assistir à saída do Municipal. Aplaudiu as fantasias mais bonitas. Achou o pessoal "gentil e bondoso". Adorou o samba, tentou dançá-lo e ficou com as pernas doloridas. Sua música preferida foi "Me dá um Dinheiro Aí" (aprendeu a letra em português). Divertiu-se pelo prazer de se divertir, sem dopings. Num entardecer foi à Cantina Sorrento com o Jorginho e Oscar Ornstein comer democràticamente uma pizza napolitana do Emílio & tio. Não bebe, não fuma, não sei se joga. Diz textualmente que ama o amor. Mas nessa parte prefiro não tocar.
A môça é noiva.

Nasceu em Chicago, no dia 13 de fevereiro de 1933, estando a Natureza em instante de capricho. (Afirmei que mulher bonita não precisa de história mas jornalista é jornalista. Vou contá-la, embora todo mundo já a conheça.) Seus pais, Joseph e Blanche Novak (norte-americanos de ascendência tcheca), batizaram-na Marilyn Pauline. Mais tarde o estúdio rebatizou-a Kit Marlowe. Ela insistiu no Novak. Finalmente, a parada ficou resolvida: Kim Novak. Sua infância foi comum. O pai tinha desgôsto porque a menina era canhota (continua canhota e suas mãos não são bonitas). Diz que era magra, anêmica, e que na escola estava sempre nos últimos lugares. Adolescente, treinou para modêlo e mereceu os primeiros assobios. Tanto ela como a irmã (três anos mais velha) tiveram aulas de piano, canto e dança. Aos 19 anos era modêlo profissional. Foi como garôta-propaganda que deu com os costados em Hollywood.
Costados que lhe garantiram fama.

Tem admiração por Fidel Castro e, quando o barbudo assumiu o poder, enviou-lhe longo telegrama de apoio. Também gosta de Krutchev, com quem bateu papo em Hollywood. Considera o Presidente Einsenhower um regular jogador de gôlfe (isso não me disse, mas sei). Seu partido nos Estados Unidos é o Democrata “mas também depende de quem estiver concorrendo às eleições”. Seu filme preferido: Picnic. Gosta de gatos e é dona daquele com quem contracenou em Sortilégio de Amor. Pinta, esculpe e faz poesia. Gostou muito do Rio de Janeiro e ficou impresionada com o Cristo Redentor. Diz que, com aquela estátua, a cidade fica parecendo uma grande igreja.
É católica.

Em Hollywood consideram-na temperamental. De quando em quando é acometida por aquêles ataques histéricos tão comuns às prima-donas. Sempre fica nervosa antes de filmar. Vive rodeada de talismãs e amuletos. Seu primeiro papel de responsabilidade (Picnic) deixou-a em estado de tensão constante. Tinha mêdo do diretor Joshua Logan, tinha mêdo do cartaz de William Holden e de Rosalind Russel. Durante a filmagem de Pal Joey, fêz o estúdio inteiro esperar por ela durante duas horas. Entre os que a aguardavam, estava Rita Hayworth, a deusa que substituíra. Sua vida emocional também é muito complexa e diversificada. Até pouco tempo submetia-se a tratamento psicanalítico. Já apareceu na capa de tôdas as revistas importantes do mundo. Já passou centenas de horas da sua vida concedendo entrevistas, posando para fotógrafos e cinegrafistas. É inteligente e sabe falar com desembaraço. Entretanto, quando foi inventada, o estúdio obrigou-a a decorar respostas. Para perguntas assim:
- Você gosta de ler? Que livros prefere?A resposta era assim:Poesia e prosa. Adoro Shakespeare e bons livros de filosofia.
Agora responde por conta própria.

Os cameramen a consideram uma das estrêlas mais fotogênicas do cinema. Seu rosto é material inesgotável. Fotografa bem em qualquer ângulo e o resultado comove os espectadores. Em Um Corpo que Cai (Vertigo) estava irreal de tão bonita. E, representou muito bem. Como atriz madura. Em suma: grau 100 para a lourinha Novak. Perguntou-lhe se gostava de Liz Taylor. Respondeu:
- Quem não gosta?
Por tudo isso, pelo que ela é, pelo que a gente gostaria que ela fôsse, meto-me na pele de uma das nossas macacas de auditório e afirmo com certa solenidade:
- É a maior "


Obs. : a grafia original foi mantida.

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