Não há dúvidas de que além de poeta, cronista, dramaturgo, contista, folhetinista, jornalista, e crítico literário, Machado de Assis também era gastrônomo.
A obra de Machado de Assis ganhou um outro olhar. O apurado em banquetes, confeitarias e cafés que moldaram o paladar da sociedade carioca, no período entre o segundo império e o início da República.
A socióloga Rosa Belluzzo após dois anos de pesquisas em toda a obra do autor,além de obras literárias e relatos de viajantes como Jean-Baptiste Debret, Carl Seidler, Adèle Toussant-Samson, Ina von Binzer, Daniel Kidder, Maria Graham e John Luccock escreve sobre o olhar na gastronomia – restaurantes, confeitarias, cardápios, iguarias e livros de receitas da época, tema tão presente em seus romances e crônicas. Fala da presença marcante da alimentação como mediadora das transformações, de uma etnografia do gosto na obra do maior nome da literatura nacional.
“Machado de Assis, relíquias culinárias” (Ed. Unesp), com prefácio de Carlos Lessa, apresenta o bruxo do Cosme Velho como um crítico gastronômico ácido atento às mudanças na vida urbana carioca. Avesso aos estrangeirismos culinários, acompanha a tendência de publicação de livros de culinária como “Cozinheiro Nacional” e “Dicionário do Doce Brasileiro”. Critica a introdução do roast beef, do croquete, do sandwich e das bouchées de dames. Preferia os sabores da terra e as velhas tradições de seu país. Comentava com sarcasmo as influências francesas e inglesa nos hábitos da elite.
Quando o assunto era o resgate das tradições culinárias do Rio, Machado enaltecia com fervor o lançamento de mais um título brasileiro. Um ano antes do lançamento de “O Confeiteiro Popular”, o escritor publicou em 2 de junho na revista O Cruzeiro a seguinte crítica: “É fora de dúvida que a literatura confeitológica sentia necessidade de mais um livro em que fossem compediadas as novíssimas fórmulas inventadas pelo engenho humano para o fim de adoçar as amarguras deste vale de lágrimas”. No mesmo texto ele diz que “o princípio social do Rio de Janeiro é o doce de coco e a compota de marmelos”.
Rosa passeia por Machado pinçando evidências que comprovam que a alimentação é capaz de dar conta de fenômenos socioculturais. Durante os séculos XIX e XX, a então capital do Brasil passou por uma profunda evolução gastronômica. E tal mudança não passou despercebida ao boêmio e frequentador privilegiado da boa mesa.
O livro também reúne 25 receitas que compõe uma miscelânea da influência européia que tanto combateu o autor. Do croquete de carne ao bouillabaisse; dos pastéis de nata ao sorvete de pitanga. Não há dúvidas de que além de poeta, cronista, dramaturgo, contista, folhetinista, jornalista, e crítico literário, o também bruxo do Cosme Velho era gastrônomo. Suas sobremesas preferidas eram cocada amarela e mãe-benta, chocolat à la creme ou bouchées des dames.
Nessa abordagem do cotidiano, a cozinha doméstica tradicional foi sacudida pela inovação, com jantares de cerimônia adornados com toalhas de linho bordadas e louças de faiança (forma de cerâmica branca). De acordo com a socióloga, era na sala de jantar onde repercutia a educação e o refinamento dos anfitriões. “Também afloraram, na capital brasileira, os restaurantes, acompanhando o projeto civilizador que acompanhou as transformações urbanas e sociais entre Segundo Império e da República”, explica.
A autora conclui que Machado de Assis reflete em sua obra o estado de espírito e uma virada na história do gosto da sociedade carioca do século XIX. “As suas crônicas e romances fornecem um reflexo da sensibilidade gastronômica e as mudanças de hábito”, completa. Da mesma forma que Machado era um entusiasta das publicações nacionais, é pertinente se alegrar com mais esta publicação por reconstruir a memória e a identidade alimentar no Brasil. Ao valorizar títulos como estes de Rosa, tem-se a oportunidade de preservar tradições, reconhecer tendências, inovar e consolidar a gastronomia local
Fonte:Pimenta Malagueta
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