sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Uma história carioca, na semana do folclore

Nesse iô-io de decisões governamentais equivocadas e intempestivas, em que se toma e se volta atrás, vale (re)ler o lúcido texto abaixo.

Sobre índios, história e um governo demolidor


Casarão onde funcionou o antigo Museu do Índio - foto de 1953
"Ao lado do estádio do Maracanã existe um terreno com um majestoso edifício atualmente em ruínas.
Construído em estilo neoclássico, o prédio foi doado ao Império do Brasil no ano de 1865, pelo Duque de Saxe, genro de Dom Pedro II, a fim de que ali se instalasse um órgão de estudo e pesquisa sobre as culturas indígenas brasileiras.

Em 1910, o local tornou-se a sede do Serviço de Proteção ao Índio – fundado pelo Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon – que ali funcionou até sua transferência para Brasília em 1962. O edifício também abrigou a Escola Nacional de Agricultura, entidade que deu origem à Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

A 19 de abril de 1953, sob a direção de Darcy Ribeiro, ali foi instalado o Museu do Índio, onde funcionou até 1977, quando foi realocado para o bairro de Botafogo. Em 1984, a União cedeu a titularidade do imóvel à Companhia Nacional de Abastecimento.
Curiosa e lamentavelmente, a despeito de sua relevância histórica, nunca houve tombamento em qualquer instância.
A área, com sua emblemática ruína, faz parte da paisagem diária de centenas de milhares de habitantes que se dirigem ao Centro da cidade todos os dias, seja de trem, ônibus, automóvel ou metrô. Quase certamente, aqueles que passam por tal cenário de abandono não podem imaginar que logo ali, onde tudo parece destruído, há uma efervescência de vida acontecendo.
Diante da gradativa deterioração do espaço e da total ausência de iniciativas do poder público para recuperá-lo, há cerca de seis anos, representantes de diversas etnias indígenas empreenderam uma ação coerente, cumprindo os desígnios originais de destinação do imóvel. Numa versão pacífica e contemporânea do líder guarani Sepé Tiaraju – aquele que no século XVIII, declarou “esta terra tem dono” – ocuparam o local e criaram a Aldeia Maracanã.
De início, só havia mato e entulho. Organizaram mutirões. Limparam o terreno. Plantaram mudas de diversas espécies. Ergueram uma cozinha coletiva com uma grande mesa. Construíram um local para cerimônias religiosas, pequenas casas e palhoças. Não são muitos em número, mas representam diversos povos e se revezam na ocupação. Há xavantes, tucanos, caingangues, pataxós, guajajaras, gaviões, pankararus, guaranis, apurinãs, fulni-ôs, potiguaras… Até um legítimo puri, este, ao contrário do que nos acostumamos a ver nas litografias de Johann Moritz Rugendas, de carne e osso, voz mansa, olhos brilhantes e sorriso doce.
E por lá ficaram. Ao contrário do museu oficial, em Botafogo, criaram com seus poucos recursos um centro cultural vivo, permanentemente aberto a todos os que queiram visitá-lo. Ali expõem suas artes, realizam suas cerimônias, fazem suas festas, contam suas histórias. Naquele pequeno oásis verde no meio de uma das regiões mais áridas da cidade, ainda é possível avistar o periquito maracanã, exatamente a ave que dá nome àquele que já foi o maior estádio do mundo, cartão postal da cidade, palco de tantas alegrias e algumas tristezas, orgulho de todo carioca, o estádio Mário Filho, o velho Maraca, o querido Maracanã.
Bem no coração da cidade do Rio de Janeiro, esta que já foi palco de duas das maiores e mais significativas conferências mundiais sobre o meio ambiente, esta que possui a maior floresta urbana do mundo, esta que é visitada anualmente por turistas de todas as partes do globo, esta que pode se orgulhar de sua formação cosmopolita. Ali, à vista de todos, um grupo de indígenas realiza um trabalho notável e que deveria receber apoio. Mas, decorridos cinco séculos, um novo Cabral os ameaça.
No afã enlouquecido da realização de obras para a Copa do Mundo de 2014, não bastasse a total descaracterização do Maracanã em nome de um conceito de modernidade bastante questionável, na manhã do dia 18 de outubro, o governador Sérgio Cabral, anunciou a demolição do prédio como parte das obras de reforma do entorno do estádio:

“O Museu do Índio, perto do Maracanã, será demolido. Vai virar uma área de mobilidade e de circulação de pessoas. É uma exigência da Fifa e do Comitê Organizador Local. Viva a democracia, mas o prédio não tem qualquer valor histórico, não é tombado por ninguém. Vamos derrubar.”
Por área de mobilidade e circulação entenda-se: o terreno seria destinado à construção de um estacionamento.
A Fifa, porém, em documento enviado à Defensoria Pública da União, nega que tenha feito qualquer pedido do gênero. Vale lembrar que durante a Copa do Mundo de 1950, o estádio recebeu um público consideravelmente maior do que o previsto para 2014, o museu funcionava no local e não houve problema algum.
Não fosse somente isso, representantes do Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e, até mesmo, do Inepac – Instituto Estadual do Patrimônio Cultural – são contrários à demolição e asseguram que não há risco iminente de desabamento, podendo o imóvel ser restaurado.
Ainda no rol das sandices ditas pelo governador Cabral estão as declarações feitas alguns dias mais tarde, após reconhecer não ter havido qualquer determinação objetiva da Fifa, quando voltou a defender a demolição:

“Na verdade não foi uma exigência da Fifa. Ela pede uma área de mobilidade com determinadas características. E no meio do caminho tem esse prédio, que não é tombado e não tem nenhum valor histórico. Portanto, não tem cabimento ele ficar no meio do caminho de uma concepção que é para garantir segurança e conforto para milhares de pessoas que vão ao Maracanã”.
E, ao ser questionado sobre o destino dos indígenas que estão no local, respondeu:

“Isso aí é um problema da Funai, não é problema meu. O fato é que nós compramos o prédio, pagamos por ele para destruí-lo.”
Então, vamos por partes. Em primeiro lugar, entre o prédio não ser tombado e não ter nenhum valor histórico vai uma grande diferença. Será que é mesmo necessário explicar isso a um governador de estado?

Não seria muito mais interessante considerar a proposta do centro cultural vivo, ainda mais nestes tempos onde políticas de valorização da diversidade cultural e do meio ambiente estão tão em alta? De fato, não há tempo suficiente para uma restauração adequada, mas para isso existem alternativas interessantes. Aqui mesmo, no estado, há o Complexo da Machadinha, em Quissamã, onde da fazenda, só restou intacta a senzala. Basta consultar os técnicos do Inepac a respeito. Sobre a relevância histórica do prédio, há farta documentação, desde que se queira localizá-la.

Continuando. O destino dos indígenas pode não ser problema do cidadão Sérgio Cabral, mas, sim, é um problema de qualquer governante. O que dizer disso além de Que declaração vergonhosa, governador!
Enfim, quanto ao “compramos e pagamos para destruí-lo”, é triste ver tamanha deturpação – consciente ou não — entre público e privado, individual e coletivo. Mas, infelizmente, tal argumentação não chega a causar surpresa. Na sanha destruidora empreendida pela dupla de demolidores Cabral-Paes em nome da Copa do Mundo e da Olimpíada, é grande a lista de imóveis ameaçados ou já desaparecidos, dentre os quais, além do Museu do Índio, encontram-se a fábrica da Brahma, o prédio do Iaserj, a refinaria de Manguinhos, o estádio Célio de Barros e o parque aquático Júlio Delamare.

E pensar que a criminosa demolição do Palácio Monroe até hoje causa tanta indignação!

....................

Como disse o historiador Nireu Cavalcanti, em palestra proferida no Museu de Astronomia em maio deste ano, parece que essas pessoas tem raiva de possuir sangue negro e índio correndo em suas veias. Só isso pode explicar tamanhos maus tratos com tudo o que – mesmo remotamente – os faça lembrar que não são europeus puros. Na ocasião, o professor Nireu referia-se à cloaca em que se transformou o rio Carioca, aquele que deu o gentílico aos nascidos na cidade.

O mesmo pode ser dito agora, em relação às obras do estádio do Maracanã e seu entorno.

O rio homônimo já está praticamente morto e a ave, governador, não pode viver em estacionamentos.

............................"

Texto de Glaucia Santos Garcia /Jangada Brasil
 Foto de Rogério Duarte


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comente! Seja bem-vindo!