quarta-feira, 6 de abril de 2016

O Rio de Janeiro continua índio



Dia 19 de abril, Dia do Índio.
Vale a pena reproduzir
a crônica de José Ribamar Bessa Freire.




O Rio de Janeiro continua índio


Francês:   Mamópe setã? (Onde é que você mora?)
 Índio Tupinambá do Rio: Kariók-pe. (Em Carioca)
 (Do  “Colóquio”  de Jean de Léry - 1558) 




O Rio de Janeiro continua sendo, 450 anos depois, índio, mas nenhum guarani foi convidado para sua festa de aniversário. Neste domingo, 1° de março, nenhum índio soprará a velinha do tradicional bolo de quase meio quilômetro que a Sociedade dos Amigos da Rua da Carioca fez para festejar os 450 anos da cidade, como parte da programação que prevê, ao longo do ano, a realização de 600 atividades: conferências, seminários, projeções, exposições, missa, performances, teatro, orquestras, bandas, salva de tiros, regata... Os índios, porém, estão ausentes de quase todas.
Mas os índios estão presentes na história carioca, a passada e a atual. Os primeiros povoadores que viviam aqui há pelo menos 8 mil anos, "eram indivíduos de forte compleição, baixos, com o rosto estreito, nariz afilado e com pronunciadas arcadas sobre os olhos”, escreve o arqueólogo Ondemar Dias. Algumas evidências mostram que, por volta de 3.000 a.C., houve uma “explosão de vida” no litoral, quando os pescadores começam a usar redes e armadilhas de pegar peixes na baía de Guanabara e surgem os primeiros agricultores, segundo Alfredo Mendonça, arqueólogo amazonense que estudou o Rio.  
No séc. XVI, quando os europeus desembarcam, encontram o entorno da baía de Guanabara habitado por milhares de índios Tupinambá, Temiminó e Tupinikin. Todos eles desenvolviam práticas sociais trabalhando, narrando, rezando, cantando, sonhando, sofrendo, reclamando, brigando, rindo e se divertindo em línguas da família tupi-guarani. Com essas línguas, classificaram o mundo. Nomearam rios, lagos, montanhas, pedras, árvores, plantas, flores, aves, peixes, insetos, mamíferos e outros animais.
Viviam em centenas de tabas, 36 das quais foram mapeadas na Ilha do Governador pelo frade André Thevet, que veio na frota de Villegagnon. Outras 32 aldeias foram listadas pelo calvinista francês, Jean de Léry, em 1558. Os portugueses acrescentaram mais povoações. A mais importante é a aldeia Kariók situada no sopé do morro da Glória, na foz do rio Carioca, que tinha uma segunda foz, mais caudalosa, na praia do Flamengo. Cada aldeia tinha população que variava entre 500 a 3.000 índios, todos dizimados pelo sistema colonial, responsável por uma catástrofe demográfica.

Tem índio no Rio 
Os territórios indígenas foram invadidos, suas aldeias destruídas, suas terras ocupadas, loteadas e distribuídas. O recôncavo foi todo retalhado. Com a fundação da vila de São Sebastião do Rio de Janeiro, sesmarias foram concedidas para constituir o patrimônio da cidade, incluindo a baía de Guanabara e adjacências. Para fora do núcleo urbano, estendia-se zona agrícola e pastoril, com lavouras, engenhos e campos de pastagem.
No Rio, no período colonial, os índios trabalharam compulsoriamente na abertura de picadas e clareiras, na derrubada de árvores e seu transporte, remando canoas, na construção de feitorias, engenhos e fortalezas, em olarias, na agricultura, na fabricação de farinha, na caça e pesca. E até meados do séc.XIX, 15 aldeias da Província abasteciam ainda a cidade com índios que prestavam serviços domésticos, faziam biscates ou eram recrutados para as obras públicas, o Arsenal da Marinha e a pesca da baleia.
Esses "índios urbanos", quase sempre sem domicílio certo, formavam uma “tribo” desfigurada que vagava pelas tabernas da Candelária, Santa Rita e São José, entrando em  conflito permanente com a Polícia. A própria Câmara Municipal do Rio requisitava das prisões os índios para as obras públicas, como foi o caso da reforma do Passeio Público, em 1831, toda feita com trabalho indígena.
Vários estrangeiros que visitaram a cidade no séc. XIX deixaram relatos, além de rica documentação iconográfica como as de Debret (1768-1848) e Rugendas (1802-1858). Índias lavadeiras, à beira do rio, no Catete, onde lavavam roupa, foram documentadas por Debret que escreveu: "Seus filhos tornam-se, com 12 ou 14 anos, excelentes criados”. Retrata índios de diferentes etnias alojados na ilha das Cobras, num barracão da Marinha.
No séc. XX, os índios continuam a transitar pela capital da República, para onde migravam por diversos motivos. O Rio sempre foi e nunca deixou de ser índio. Hoje, o estado do Rio abriga apenas 1.9% do total da população indígena do Brasil, parte dela vivendo na capital. Os dois últimos censos do IBGE indicam que em 2000 moravam dispersos pelos bairros da periferia da cidade cerca de 15.622 índios, que diminuiu em 2010 para 6.764, mas que cresce se incluirmos os 11.961 índios que moram na Região Metropolitana.

A carioquice
O Rio continua índio no seu patrimônio cultural material e imaterial, que modelou a identidade carioca, ainda que muitos ignorem tais influências e outros a rejeitem mesmo sem conhecê-las. O Rio é  índio em seu patrimônio linguístico, no jeito de falar e de ser. Não é possível sequer se identificar e indicar o endereço sem pagar tributo simbólico às línguas indígenas.  Carioca é nome do rio sagrado dos Tupinambá que significa “morada (oca) do acari”, um peixe que cava buracos na lama e ali mora. Da mesma origem são nomes de bairros e acidentes geográficos.
O sotaque carioca está presente na busca de uma linguagem musical brasileira realizada, entre outros, pelo carioca de Laranjeiras Heitor Villa-Lobos, que exalta "Tupã, deus do Brasil" no Canto do Pajé  e canta saudoso: "Anhangá me fez sonhar com a terra que perdi". Está também no maestro Carlos Gomes, paulista que viveu no Rio e usou em sua ópera O Guarani instrumentos indígenas como maracás, inúbias, borés e flautas. O Rio continua índio no carnaval, no candomblé e na literatura.
Os autos teatrais de Anchieta, o poema Caramuru (1781) de Santa Rita Durão, a obra épica A Confederação dos Tamoios (1856) de Gonçalves de Magalhães mostram que a presença do índio na literatura marcou a formação da identidade nacional, o que foi referendado por Gonçalves Dias e José de Alencar que viveram na capital. Os índios foram imaginados como modelo de brasilidade e, num certo sentido, de carioquice, com os Tamoio ou Tupinambá sendo cantados em prosa e verso.
A carioquice do Rio está impregnada por contribuição dos índios à identidade local num processo histórico violento, em que conhecimentos subterrâneos foram repassados oralmente de uma geração à outra no campo da medicina, da farmacologia, da culinária, da biologia, da agronomia, da religião, das festas, dos rituais. Os saberes indígenas acabaram legando alternativas de sobrevivência nos trópicos, transmitindo-nos inventos adaptativos que desenvolveram em milhares de anos, concretizados nos métodos de plantar, caçar, pescar e preparar alimentos.
O Rio continua índio no patrimônio arqueológico da cidade, parcialmente destruído pela especulação imobiliária, cujos sítios oferecem pistas sobre sua ocupação. Museus e arquivos são também territórios indígenas, pois guardam marcas indeléveis da presença deles. Esse patrimônio documental permite identificar a contribuição indígena na configuração da paisagem da cidade, cujos parques e jardins contaram com o trabalho dos índios, assim como a construção de edifícios, fortalezas e monumentos.

Os Arcos da Lapa
No patrimônio de pedra e cal, entre outros, encontramos os Arcos da Lapa, construído com o sangue e o suor dos índios, conforme carta do sec. XVII escrita por André Soares, responsável pela construção do Aqueduto que trouxe água do rio Carioca para a cidade, "a qual obra se não pode fazer sem assistência dos Índios, que são os trabalhadores que naquellas partes costumão trabalhar". O autor menciona índios nas obras do Senado da Câmara e nos engenhos de particulares. A informação é confirmada pelo jesuíta Plácido Nunes (1683-1755), em carta dirigida ao Vice-Rei do Brasil:
"Em nossos tempos todas as Fortalezas, que se acham no Rio de Janeiro  foram feitas pelos Índios (...) Estes mesmos abriram o Caminho Grande, que vai do Rio de Janeiro para Minas até o Rio Paraibuna.  Estes os que conduziram todos os materiais e instrumentos para a Casa de Fundição (...). Estes, finalmente os que trabalharam o Aqueduto pelo qual se pôs a Água da Carioca na Cidade do Rio de Janeiro”.
Confirmando que o Rio de Janeiro continua índio, na resistência e nas alianças, a cidade foi palco de manifestações, em junho de 2013, de indígenas da denominada Aldeia Maracanã, aliados a não-indígenas, que cobraram a preservação do antigo prédio do Museu do Índio condenado à destruição. Diante do clamor público, o então governador Sérgio Cabral, retrocedeu e anunciou a restauração do imóvel situado ao lado do Estádio do Maracanã para sediar um Centro de Referência das Culturas Indígenas (CRCI).
Depois de discutir com 41 líderes indígenas de todo o país, o governo definiu por decreto os objetivos do CRCI, que se compromete a"promover, preservar e difundir a história, os valores, os conhecimentos e todos os aspectos culturais dos indígenas brasileiros, com foco especial nos grupos que vivem ou viveram nas diversas regiões do estado do Rio de Janeiro".
Não é preciso aniquilar o passado para entrar na modernidade, o povo carioca tem muitas razões para se identificar com a diversidade das culturas que aqui floresceram. O Rio continua índio. Resistindo. Sempre. O Rio de Janeiro, fevereiro e março. 

(Crônica reproduzida do Diário do Amazonas)
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José Ribamar Bessa Freire é professor, graduado em Comunicação Social (UFRJ-1969), especializado em Sociologia do Desenvolvimento (IRFED- Paris 1971-1972), doutor em Letras (UERJ-2003) e em História na École Des Hautes Études en Sciences Sociales – EHESS, Paris, (1980-1983).Atualmente, trabalha como professor na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como coordenador do programa de Estudos dos Povos Indígenas.

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