quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

ARPOADOR, segundo Drummond


Essa Crônica Carioca de Todos os Tempos, de 1963,
leva a assinatura de Carlos Drummond de Andrade,
e nesse tempo de verão e praias, tem tudo a ver.

Fala-nos do charmoso Arpoador.

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"Pediram-me que definisse o Arpoador. É aquele lugar dentro da Guanabara e fora do mundo, aonde não vamos quase nunca, e onde desejaríamos (obscuramente) viver. 
Viver sempre, para sempre, no Arpoador: sonho que não ousamos acalentar, de tal maneira aderimos à armadura urbana, e mal sabemos o que é cidade e o que é indivíduo. Ir ao Arpoador, de manhã, de tarde, é quanto nos permitimos. Mesmo assim, com que intenções. 
Há os namorados, que querem dar a seu namoro moldura atlântica, céu e onda por testemunhas. Julgam-se merecedores de acompanhamento sinfônico-paisagístico, e não percebem que o Arpoador, áspero e depurado na condição de rocha, está acima e além de namorados. 
Há os que vão pescar, ou pensam que Caiçaras de beira mantêm relações com o mar molhando os pés na poça limosa. Sem olhos para o que é visão e cosmovisão, ouvidos para o que conta o vento chegado de viagem, insetos na pele da natureza, depositam aqui e ali acessórios mofinos: sandálias, sanduíches, jornais. E enrolando e desenrolando monotonamente a linha, que acaba se partindo entre pedras, julgam estar no Arpoador, mas o Arpoador não está neles. 
Há os que seguem o rito pequeno- burguês de domingo e feriado, e misturam Arpoador a praia, peteca, sorvete, cineminha, ajantarado, Jóquei. Chegam, passam, e é como se nunca vissem o Arpoador, pois não o decifram. 
E os que procuram estar sós, roídos de dor moral ou desgosto de superfície, os que fazem do Arpoador berço para ninar angústia. Que entendem de solidão? O Arpoador é dos reinos mais povoados e movimentados da terra: espaço, luz e forma estão ali em contínua diversificação, criando-se e recriando-se com a mobilidade de arquitetura aérea. É solidão, sim, mas que diferente do comum estar só com as nossas pobrezas e limitações. 
Há também o que vai para se entregar, ser um com o Arpoador, mil-partido. O que, recebendo na cara a neblina da onda mais alta, sente o preço de dádiva a ninguém oferecida, e cujo destino é perder-se e repetir-se. O que não pede poesia nem consolo nem peixe nem cenário nem esquecimento, mas abarca e absorve o Arpoador em sua infinitude, apenas com se deixar levar e dissolver, ponto mínimo, imperceptível, na massa de ar, nuvem, brisa, penedo, sentimento imemorial de vida. 
Vi a tarde cair no Arpoador; não era bem isso, mas Arpoador e tarde se transfundindo, errando em extensão ilimitada. Rudes forças, poderosos silêncios coados no rumor, salinos murmúrios se iam juntando, compondo severa música, desfalecendo. Não irromperam cores espetaculares para turismo.  
O sol recolhia-se com dignidade. Laivos de prata-pérola amorteciam o verde da água. Neutra, a mancha das casas. Montanhas ganhavam leveza de pássaro, sumiam. Senti o balanço, a respiração, o concentrar-se da hora diferente de todas, porque se livrara do tempo, e a mim também me livrava.  
Assim é o Arpoador."

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