Nesse dia 3 de outubro se celebra o centenário do cantor carioca Orlando
Silva.
Por João Máximo
"Ainda é possível discutir se ORLANDO SILVA— nascido no Rio de Janeiro em 3 de outubro de 1915 — foi ou não o maior cantor surgido no Brasil. O jeito de cantar música brasileira mudou muito, sobretudo a partir de um dos seus mais ilustres admiradores: João Gilberto.
Mesmo considerando apenas o antigo jeito de cantar, ainda é discutível se o cantor cujo centenário se comemora terá sido, mesmo, o maior. O que não se discute é que sua voz é a mais arrebatadora das quantas soaram no disco e no rádio dos últimos cem anos.Tal voz — impressionante pela perfeição com que passava por entre os graves e agudos das canções mais difíceis que compunham para ele — encanta qualquer ouvinte sensível ao antigo jeito. Não só a voz nasceu com ele, mas também o estilo. Sem estudar canto, sem seguir os passos de outros e sem ouvir conselhos, Orlando fez-se insuperável na arte do fraseado, da técnica de respiração.Pena que tudo isso tenha durado pouco mais de sete anos. Porque o Orlando que fez história, tornando-se o primeiro ídolo de massa da música e do rádio brasileiros, é o que canta e grava discos de 1935 até pouco depois de 1942.
Em sua história, há lugar para glória e drama (ou até mesmo tragédia). Orlando tem a infância pobre de quase todo menino suburbano da época. Aos três anos, perde o pai (violonista que chegou a tocar com Pixinguinha) e, aos 17, o padrasto. Com a mãe obrigada a sustentar os filhos, ele e os irmãos largam o colégio ainda no primário e vão ganhar a vida — no caso dele, como trocador de ônibus. Antes, sofre grave acidente ao ter o pé esquerdo preso no estribo de um bonde em movimento. Operado, perde três dedos.Cantou desde menino. Aos 19 anos, decidido a se profissionalizar, faz várias tentativas de emprego em rádio. Só o consegue quando, apresentado a Francisco Alves pelo compositor Bororó, impressiona o cantor que, até então, é o mais influente da vida musical carioca. Francisco Alves o ajuda. Em pouco tempo, enquanto se apresenta nas rádios Cajuti e Nacional — de cujo programa inaugural, em 1936, ele participa — Orlando começa a viver na gravadora Victor a fase áurea de sua discografia.Seu primeiro grande sucesso, gravado em 1939, é “Lábios que beijei”, valsa-canção de J. Cascata e Leonel Azevedo. Com ela, conquista o público de todo o país. Ganha do locutor Oduvaldo Cozzi o epíteto com que se consagra: “o cantor das multidões”. E então, ocorre o envolvimento com as drogas. É possível que estas tenham entrado na vida de Orlando quando, recuperando-se de dolorosa cirurgia nos dentes, ele recorreu aos mesmos derivados de morfina que o haviam aliviado quando operou o pé. A decadência do homem começa aí. A do cantor, um tempo depois.
“COM UMA LÁGRIMA NA VOZ”
A popularidade e o dinheiro abrem portas para o ídolo. Passa a conviver com os famosos do rádio, a conquistar o público feminino. Zezé Fonseca, a bela e culta cantora e atriz da Nacional, vive com ele um caso turbulento. Zezé é ciumenta e os dois brigam muito. Seu convívio com ele dá-se durante o problema com as drogas. Embora ela própria, no fim da vida (morreu em 1962), também estivesse entregue à bebida, sua única relação com o vício de Orlando, segundo amigos dos dois, são as inúteis tentativas de recuperá-lo.As drogas acabam levando Orlando a um estado de degradação cujo momento mais cruel bem pode ser o testemunhado pelo compositor Roberto Martins: ajoelhado aos pés de um dos irmãos Meira, pioneiros do tráfico no Rio, o cantor suplica por uma dose, enquanto o bandido, às gargalhadas, pergunta: “Cadê o cantor das multidões?”Com isso, os discos que Orlando Silva grava nesse período são de fato os seus melhores. A quase totalidade das canções de seu repertório (sambas, valsas, foxes, marchas carnavalescas) tem o mesmo acento triste. São letras de fossa, pessimistas, sobre amores frustrados, que Orlando torna ainda mais sentidas. Daí outro de seus cognomes: “o cantor com uma lágrima na voz”.É a única restrição que alguns podem fazer ao seu estilo, mesmo sabendo que seresteiros lacrimosos eram comuns na época. É que a exacerbação das lamentações acaba fazendo com que os letristas exagerem somente para ter seus versos gravados por ele. A tal ponto de um desses letristas, o nada pessimista Pedro Caetano, escrever, para valsa de Claudionor Cruz a letra de “Caprichos do destino”, responsável pelo boato sobre seu suicídio. Um dos versos: “Eu quero fugir ao suplício a que estou condenado”. Outro: “Sou um covarde, bem sei que o direito é levar a cruz até o fim/Mas não posso, é pesada demais para mim”.
São muitas as letras feitas nesse tom para Orlando.Após os discos na Victor, gravando na Odeon, na Copacabana, na mesma Victor em 1959 e em outros selos, raramente Orlando será o mesmo de antes. Vai perdendo a voz, castigada por um timbre rouco que lhe torna tudo mais difícil, até as lágrimas. Não há como saber até que ponto as drogas e a bebida lhe afetaram a voz. O certo é que, mesmo num momento melhor para o homem, casado e sossegado, o cantor das multidões deixa de existir.
FILME, EXPOSIÇÃO E SHOWS
Orlando morreu no Rio em 7 de agosto de 1978. Aos 62 anos, aparentava mais. Já deixara de cantar. Houve certo interesse por ele (mais curiosidade do que interesse) quando João Gilberto declarou sua admiração e gravou sambas de seu repertório. Caetano Veloso, em “Onde andarás?”, e Paulinho da Viola, em “Brancas e pretas”, prestam tributos ao seu estilo. E só. A antológica caixa de CDs que José Milton produziu para BMG, reunindo os melhores momentos na Victor, está fora de catálogo."
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