Por Reinaldo Azevedo
"Imperdível, caros leitores, por uma coleção de motivos, o filme Ninguém Sabe O Duro que Dei, dirigido por Claudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal, que relata a ascensão e queda — e que queda! —do cantor Wilson Simonal. Há muito mais ali do que o simples relato da trajetória de um ídolo brasileiro, de raro talento, que caiu em desgraça.
O que se vê na tela é a exposição detalhada de como uma máquina de difamação ideológica pode destruir uma carreira, apagar uma história, eliminar um pedaço da memória cultural do país. E não posso deixar de pôr isto aqui, já no primeiro parágrafo: a fita traz depoimentos dos cartunistas Ziraldo e Jaguar, que eram do jornal O Pasquim, que ajudou a destruir Simonal.
Levem suas crianças (acima de 10 anos), como fiz, para ver também esses dois
senhores.É um bom pretexto para que digam: “O papai (ou mamãe) promete jamais falartanta asneira mesmo que visitado por aquele velhinho alemão...” Se algumas pessoas são para nós um norte moral, essa dupla é o sul.
Já chego lá. Negro, filho de uma empregada doméstica, saído literalmente da pobreza, Simonal se tornou um dos mais populares cantores brasileiros.Até aí, vá lá, a estupidez também pode render aplauso.Acontece que ele era bom. Muito bom. Um dueto com Sarah Vaughan ou sua habilidade em reger um coro de 30 mil vozes no Maracanãzinho dão algumas pistas do seu talento. Fragmentos de entrevistas e shows, habilmente costurados no documentário, revelam um homem inteligente, chegado aocinismo e à auto-ironia.
E, vê-se ao longo do filme, não era do tipo chegado ao coitadismo, ao vitimismo, ao pobrismo, a mascarar deficiências técnicas com sua origem humilde, essa coisa tão asquerosa e corriqueira hoje em dia. Ao contrário: tinha plena consciência deseu gigantesco talento e ganhou a fama de arrogante — de “preto arrogante”. E vocês sabem o quanto isso podia e ainda pode ser indesculpável.
Cantor excepcional, criativo, capaz de transitar na fronteira devários estilos, Simonal era uma das possibilidades do pop brasileiro,abortado por um conjunto de infaustos acontecimentos: da ditadura dos militares à ditadura dos “profundos”, que tomou conta da música. Outro, de estilo diferente, mas não menos marginalizado, era Tim Maia— leiam Vale Tudo - O Som e a Fúria de Tim Maia, de Nelson Motta, que, diga-se, ilumina aquele período, neste documentário, com a lucidez habitual. Simonal não tinha grandes “mensagens” a passar, sabem? E sua música dispensava manual de instrução e guia para entendimento de metáforas.
Mas Simonal fez, sim, uma grande besteira. Em 1971, desconfiado de que seu contador, Raphael Viviani, que fala no filme, andava metendo a mão na sua grana, contratou dois seguranças, um deles ligado ao famigerado Dops, para "resolver" a questão. O homem foi raptado, torturado e obrigado a assinar uma confissão. A mulher de Viviani chamou a polícia. Simonal se complicou. Para tentar se safar, afirmou que tinha “contatos com os homens” — sim, os homens do regime...Era o seu fim.
Passou a ser tratado como dedo-duro e delator doscolegas — embora, como lembra Chico Anysio, não haja uma só pessoa que possa dizer ter sido prejudicada por Simonal — além de Viviani, éclaro. A imprensa o tratava como agente dos órgãos de segurança,assim, como um aposto comum, desses que servem para identificar pessoas: “Simonal, ligado ao Dops...”
Ele passou a ser a pessoa mais demonizada no Pasquim, de Ziraldo e Jaguar (o sul moral do Brasil; jávolto ao caso). Num dos quadrinhos, aparece, acreditem, dando um tirona cabeça!!! Não, Simonal nunca foi agente do DOPS. Acontece que as esquerdas já se incomodavam com os seus hits muito pouco engajados. Foi ele quem transformou num sucesso estupendo País Tropical, de Jorge Benjor. Aquele trecho da música cantado só com as primeiras sílabas daspalavras foi uma “bossa” sua: “Mó, num pa tro pi/ abençoá por De/ queboni por naturê/ mas que belê...” “Patropi” virou substantivo, àsvezes adjetivo. Aquela parte da crítica que acreditava que boa músicatinha de falar das nossas mazelas e, eventualmente, acenar com a “revôsociali dos oprimi” já estava na sua cola.
Era considerado ufanista e instrumento da ditadura. Em 1970, havia acompanhado a Seleção Brasileira na Copa do México. Simonal, em suma, era o alienado do“patropi”. O episódio truculento de 1971 — pelo qual ele tinha, de fato, deprestar contas, e ninguém está a dizer o contrário — era a fagulha quefaltava num barril de vários preconceitos combinados: o “pretoarrogante”, que chegou a se declarar “de direita” e que era tido como o cantor “do regime”, passou a ser considerado, também um dedo-duro.
Os shows desapareceram. Artistas que antes faziam questão de dividir opalco com ele passaram a rejeitá-lo.
O Pasquim o esmagava impiedosamente, difamando-o entre artistas e intelectuais. A grande imprensa não ficava atrás. Foi banido das televisões. Estabeleceu-se uma espécie de stalinismo midiático: Simonal foi apagado da história brasileira. O homem que fizera o dueto com Sarah Vaughan — é visível o encantamento da diva — era um proscrito.
Depois de demonizado,decretou-se o silêncio.
Seu nome foi apagado. Em 2000, morreu em razãodo agravamento de uma cirrose
hepática.Ninguém Sabe o Duro que Dei, título do filme, é verso de um dos seus
sucessos. Justamente uma música que ironizava o fato de que muitoscriticavam ou
invejavam a sua boa vida e a sua riqueza. E ele, então,respondia: “Ninguém sabe
o duro que dei”. Pois é... O que é espantoso,mas muito próprio da indústria da
difamação, é que não havia prova,evidência ou indício da ligação de Simonal com
a “repressão”. Inútil!O filme é equilibrado. Não há qualquer esforço para desculpar Simonal pela bobagem. O depoimento do contador é bastante longo, e não há amenor intenção de desacreditá-lo. Faço essa observação para deixarclaro que Claudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal não maquiam avida do artista, corrigindo com a simpatia o que há nela de condenável. Mas não há como não se deixar capturar pelo óbvio talento de Simonal. Talvez pudéssemos sair do cinema um tanto divididos: “Pô,também quem mandou fazer aquela tolice?”
Mas Zirado e Jaguar nos tiram dessa sinuca.VELHOS NA ALMA
Ziraldo comandava O Pasquim. E isso quer dizer que comandava, também,a difamação contra Simonal.
Os diretores estão de parabéns por terem deixado o homem falar à vontade. Quando ele fala, o mundo se ilumina porque nos damos conta de quem ele é. O cara reconhece que parte do ódio que havia contra o artista decorria do fato de ele ser, vamos dizer, um preto bem-sucedido. Mais: admite que aqueles eram tempos em que um lado era o bem, e o outro, o mal.
E Simonal estava do lado errado...
Ziraldo sabe, hoje em dia, que o cantor jamais fez parte dos órgãos derepressão. Se, à época, ainda podia alegar alguma ignorância, hoje nãopode mais. Tem clareza de que o cantor caiu vítima da máquina dedifamação ideológica não por aquilo que fez, mas por aquilo que nãofez. Pensam que há nele alguma sombra de arrependimento ou, vá lá, dereconhecimento ao menos das injustiças cometidas? NADA!!!
O cartunista recorre a uma imagem canalha, asquerosa, nojenta mesmo,para se referir ao caso. Segundo diz, os confrontos ideológicos eramcomo lutas de capoeira, com pernadas para todos os lados. E alguns tinham a má sorte de estar na frente.
Entenderam? Ziraldo e as esquerdas davam as pernadas, e o pobre Simonal tomou a sua. Para este senhor, isso é parte do jogo.
Jaguar, que continua a investir na personagem do bêbado profissional,vejam lá por quê, não fica atrás em grandeza moral. Faz um relato debochado da tragédia de sua vítima e diz: “Ele morreu de cirrose; poderia ter sido eu”. E cai na gargalhada. Ah, sim: ao falar sobrenegros de sucesso, cita o nome de Pelé e diz: “Se bem que Pelé é branco...” Entenderam?
Para Jaguar, um negro só é negro se exibir sinais explícitos de sofrimento e for engajado. A propósito: o depoimento de Pelé é um dos grandes momentos do filme.
A dupla do Pasquim, mesmo sabendo que Simonal era inocente, não o anistia, não. Nem a anistia moral eles lhe concedem.
É que os dois não sabem o que é isso. Só conhecem o perdão traduzido em reais A Comissão de Anistia mandou pagar R$ 1.000.253,24 ao milionário Ziraldo e R$ 1.027.383,29 ao nem tão rico Jaguar(confessadamente, ele “bebeu” todo o dinheiro que o jornal lhe rendeu).
Mais: ganharam também o direito a uma pensão mensal permanente de R$ 4.375,88. Por quê? Ora, porque eles foram considerados “perseguidos pelo regime militar” por conta de sua atuação no Pasquim, aquele que desenhou Simonal dando um tiro na cabeça...
Sensatas e até comoventes são as palavras dos cantores e compositores Simoninha e Max de Castro, filhos de Simonal. Tentam entender a personagem na lógica dos confrontos de um período e dizem ser necessário resgatar sua obra, sem qualquer viés de confronto.
O ódio de que Simonal foi vítima (ainda presente nas falas irresponsáveis deZiraldo e Jaguar) não turvou o pensamento dos filhos, a cujos shows o pai chegou a ir. Mas os via escondido, sem mostrar a cara. Não queria,como conta sua segunda mulher, “prejudicar os meninos”.
Não deixem de ver o filme. Vale como divertimento e também como advertência: a máquina de difamação, que dá pernada a três por quatro(e dane-se quem está na frente), continua ativa. E agora está no poder.
PS: O filme merece uma atenção bem maior do que a que vem recebendo. De certo modo, a maldição continua. Como NÃO diria Chico Buarque, as esquerdas inventaram o pecado, mas se esqueceram de inventar o perdão."
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VIVAS A WILSON SIMONAL!
Elizabeth, Wilson Simonal foi vítima daquela injustiça, creio eu, não propriamente pelo que foi acusado, mas muito pelo tipo que fazia, de "malandro", "esperto", coisa que não era na realidade. Foi verdadeiramente um grande intérprete da música popular brasileira. E como tal causou muita inveja.
ResponderExcluirBeijos.