quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Crônica sobre o Ano Novo



Liquidação de Ano Velho
Machado de Assis



Meia hora depois apeava-se Félix de um tílburi à porta de uma casa no Rossio. Subiu lentamente as escadas; a porta do fundo estava aberta; Félix deu uma volta pelo interior da casa, e foi até à sala, sem que o sentisse uma moça, que estava assentada perto da janela, com o rosto voltado para a rua.
— Cecília! disse ele.
A moça estremeceu e voltou-se.
— Ah! és tu. Tão tarde!
Félix aproximou-se, deu-lhe um beijo, e tirou-lhe o livro da mão.
— Tarde? disse ele folheando o livro; não pôde ser mais cedo; tive visitas em casa.
A moça contentou-se com a resposta; levantou-se e pondo-lhe os braços à roda do pescoço, perguntou:
— Jantas hoje com alguém?
— Janto lá em casa.
— Lá em casa? repetiu ela; e por que não cá em casa?
— Não posso.
— Tens visitas?
— Não.
— Jantas só?
— Janto.
— Preferes isso à minha companhia? murmurou enfim a moça com voz triste.
— Cecília, respondeu Félix dando à voz toda a doçura compatível com a rigidez da sua resolução, há circunstâncias que me obrigam a não jantar cá nem hoje nem nunca.
Cecília empalideceu. Félix procurou tranqüilizá-la dizendo que ia explicar-lhe melhor. Insensível às suas palavras, foi ela sentar-se no sofá e aí permaneceu alguns instantes silenciosa. Félix deu alguns passos na sala, aspirou as flores que tinham sido postas numa jarra, naquele mesmo dia, talvez para recebê-lo melhor; acendeu um charuto, e foi sentar-se em frente de Cecília. A moça fitou nele os olhos úmidos de lágrimas. Depois, como se os lábios tivessem medo de romper uma cratera à chama interior, murmurou estas palavras:
— E por que nunca mais?
— Cecília, disse o doutor deitando fora o charuto apenas encetado, eu tenho a infelicidade de não compreender a felicidade. Sou um coração defeituoso, um espírito vesgo, uma alma insípida, incapaz de fidelidade, incapaz de constância. O amor para mim é o idílio de um semestre, um curto episódio sem chamas nem lágrimas. Há seis meses que nos amamos; por que perderás tu o dia em que começa o ano novo, se podes também começar uma vida nova?
Cecília não respondeu; fitava nele os olhos, que, se eram ternos e buliçosos nas horas de alegria, eram naquele momento sombrios e profundos. Félix pegou-lhe na mão. Estava fria.
— Não fiques abatida; o que faço agora não é novidade; ouviste-me dizer muitas vezes que a nossa afeição era um capítulo curto. Rias então de mim; fazias mal, porque era alimentar uma esperança vã.
— Era, interrompeu Cecília com voz trêmula; reconheço agora que era. Esperava, com efeito, que eu pudesse, com a minha constância, resgatar os erros que me pesavam na consciência. Agarrei-me a ti como a uma tábua de salvação; a tábua não compreendeu que salvaria uma vida e deixa-se levar pela onda que arrebata das minhas mãos. Enganei-me. Não te faço recriminações; espero que me farás justiça...
— Faço-te toda a justiça, redargüiu ele, acuso-me eu mesmo de estar abaixo do papel de redentor.
Cecília não prestou atenção ao tom irônico destas palavras, nem sequer as ouviu. Levantou-se, deu alguns passos, encostou-se ao piano e pondo a cabeça entre as mãos soluçou à vontade. Mas essa explosão foi quase silenciosa e durou pouco.
Meia hora depois despedia-se Félix de Cecília, declarando-lhe que saía dali como um gentleman, e que ela receberia os meios necessários para viver até que o esquecesse de todo.
Cecília recusou esse ato de generosidade. Espantou-o imensamente tamanho desinteresse; concluiu que ela teria algum amor em perspectiva.
Saiu.
Na rua do Ouvidor encontrou o doutor Meneses; jovem advogado com quem entretinha relações.
— Vem jantar comigo, disse.
— Não jantas com Cecília?
— Acabei o capítulo; Cecília está livre.
— Houve choro?
— O choro pertence ao cerimonial da separação. Era indispensável. Cecília verteu algumas lágrimas, que eu procurei enxugar prometendo-lhe os meios de viver algum tempo. Recusou; mas eu não lhe aceito a recusa.
— Fizeste mal em separar-te dela; Cecília amava-te.
— Meneses, disse Félix, eu nunca faço mal quando quebro uma cadeia: liberto-me.
— Talvez tenhas razão.
— Mas vem jantar comigo, continuou Félix dando-lhe o braço.
— Não posso, vou jantar com minha mãe.
— Ah!
— São apenas duas horas; passearei contigo até às três. Ou vais para casa?
— Não.
Deram o braço e desceram a rua.
— Se não é indiscrição, Félix, disse Meneses ao cabo de alguns minutos, houve algum arrufo sério entre vocês?
— Não.
— Desconfiavas dela?
— Também não.
— Nem te arrufaste, nem tinhas desconfiança. Sei que ela gostava de ti, e tu mesmo me afirmaste que não era nenhuma desperdiçada. Havia portanto um milheiro de razões para que vocês prosseguissem neste romance. Dar-se-á que tenhas em vista algum casamento?
Félix riu-se e levantou os ombros.
— Então, não compreendo, concluiu Meneses.
— Eu te digo, respondeu Félix; os meus amores são todos semestrais; duram mais que as rosas, duram duas estações. Para o meu coração um ano é a eternidade. Não há ternura que vá além de seis meses; ao cabo desse tempo, o amor prepara as malas e deixa o coração como um viajante deixa o hotel; entra depois o aborrecimento — mau hóspede.
Meneses ouviu as palavras de Félix com os olhos postos no chão; sorriu ligeiramente quando ele acabou.
— Queres ouvir uma coisa? perguntou.
— Dize.
— O teu cinismo parece-me hipocrisia.
— Não é hipocrisia nem cinismo; é temperamento.
— Não creio.
— Por quê?
Meneses não respondeu.
— Quase me arrependo de ser teu amigo, disse ele depois de algum tempo.
— És meu amigo? perguntou Félix com ar de mofa.
Meneses parou e encarou o companheiro.
— Duvidas?
— Não duvido; mas ignorava isso até agora; sabes que as nossas relações datam de pouco tempo.
— Que importa o tempo? Há amigos de oito dias e indiferentes de oito anos.
— Há!
A conversa tomou outra direção. Meneses ainda tentou falar da moça, mas Félix não lhe prestou atenção. Às três horas separaram-se, Félix para as Laranjeiras, Meneses para o Rossio.
Meneses era uma boa alma, compassiva e generosa. Tinha em flor todas as ilusões da juventude; era entusiasta e sincero; estava totalmente limpo da menor eiva de cálculo. Podia ser que com os anos perdesse algumas das suas qualidades nativas, que nem todos resistem a estes dois terríveis dissolventes: os lances da fortuna e o atrito dos caracteres. Mas naquele tempo ainda não era assim.
A situação de Cecília tinha-o comovido. Resolveu ir ter com ela.
Cecília ficara resignada, mas triste. Quando Meneses entrou na sala estava ela ao piano, tinha apoiado a cabeça em uma das mãos, e corria os dedos pelo teclado. Contou-lhe tudo o que se passara; confessou que não esperava a súbita mudança de Félix, que a sua dor fora imensa, e que daria tudo para fazer reviver o recente passado; mas que não nutria nenhuma esperança de reconciliação.
— E se eu tentar fazer alguma coisa?
— Tentará em vão, respondeu ela. Além de que, eu não tenho nenhum direito de prolongar uma felicidade incompatível com a vontade dele. Errei, confiando demais; errarei se tiver ainda uma esperança...
— Quem sabe, Cecília? disse o moço, pondo-lhe a mão no ombro; é possível que Félix tenha cedido a um capricho. Virá a arrepender-se depois, mas o seu orgulho não lhe deixará dar o primeiro passo. Nesse caso uma pessoa influente pode convencê-lo de que a primeira glória é a reparação dos erros.
Cecília levantou os ombros; foi a sua única resposta.
Meneses perguntou se haveria alguma razão de ciúmes.
— Posso jurar-lhe que durante todo este tempo pertenci-lhe exclusivamente.
O juramento de Cecília não devia valer muito aos olhos de um homem que conhecesse bem todos os recursos de uma mulher naquelas condições. Mas o nosso Meneses era ingênuo em coisas tais. Saiu de lá cheio de piedade. Nessa mesma tarde mandou uma carta às Laranjeiras, justamente na ocasião em que Félix acabava de ler outra carta de Cecília. A carta da moça era tranqüila e até certo ponto nobre. Não lhe fazia nenhuma recriminação, nem implorava nenhum favor. Defendia-se apenas, retirando de si a responsabilidade da separação.
A carta de Meneses era cavalheiresca: descobria o estado de alma de Cecília e não hesitava em chamar ingrato ao prófugo dardânio. Félix sorriu lendo ambas as missivas; depois atirou-as a uma cesta e nunca mais as viu.

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Liquidação de Ano Velho, capítulo II do romance Ressurreição, primeiro romance do carioca Machado de Assis, publicado em 1872.


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