sábado, 29 de dezembro de 2012

O Ano Novo no Rio de Janeiro do final do século XIX



Este texto foi escrito pelo historiador José Alexandre Melo Morais Filho no ano da Abolição, em 1888. Conta-nos hábitos e costumes dos festejos de Ano Novo daqueles tempos.
Faz parte do livro "Festas e Tradições Populares do Brasil", prefaciado por Sílvio Romero (1851-1914) e publicado em 1901.







"...No Rio de Janeiro a folia começava de véspera. A cidade, mais animada exteriormente pelo concurso de famílias e de indivíduos ambulantes, revelava o júbilo público, que se ostentava sem reserva. 
Em qualquer praça, em qualquer rua, quem olhasse as janelas, notaria fisionomias estranhas, caras novas, que pela maneira de apresentar-se, pela compostura, tornava-se distintas de muitas que lá estavam, apreciando o mesmo objeto, entretidas pelo mesmo assunto. 
Nas intermináveis galerias de sacadas, janelas de peitoril e postigos, viam-se moças toucadas de flores naturais ao lado de algumas que não as tinham, homens vestidos de brim branco conversando com amigos trajados como para as recepções íntimas, velhas folgazãs e gritadeiras falando para as vizinhas de defronte, crianças traquinas e arrenegadas trepando nas grades de ferro das sacadas, suspendendo dos espigões as maçanetas de chumbo das extremidades, que, às vezes, lhes escapando das mãos, machucavam-lhes os pés.. 
E o que eu queria dizer?
Eram as famílias que tinham chegado da roça para passar o Ano Bom com os parentes, convidando-os para a Véspera de São João em seus sítios e fazendas.
Aquelas cujas relações não iam além da corte, reuniam-se igualmente, completando o aspecto pitoresco dessa cena, mais ou menos populosa, segundo os tempos em que esses costumes eram de rigor.
Com antecedência, já os presentes de festas principiavam a chover, e a escravatura a fazer-se interessada na felicidade de seus senhores.
E as tradições consolidavam as bases da família, e o reinado das superstições iluminava-se da esperança.
O dia de Ano Bom era a época em que os membros de uma mesma família congregavam-se. Vindo por vezes de grandes distâncias, passavam juntos, no meio do prazer e das felicitações, até depois de Reis.
Para despontar o Ano Novo, ninguém dormia antes da meia-noite, pois era da crença popular, que quem se conservasse com os olhos abertos até depois daquela hora, veria romper a aurora do ano seguinte.
Então concluídas as magníficas ceias, as cantorias ao Menino em seu presepe, no fim da pilhérias dos velhos matutos, de diálogos extravagantes, os inocentes namoros ferviam nas salas, ao diapasão do barulho dos pratos que se lavavam nas cozinhas, das rascadas das senhoras com as negras, do ressonar dos meninos estirados nos sofás e nas cadeiras da sala da frente, à espera do Ano-Novo.
Quando o relógio batia meia-noite, uma onda marulhosa de alegria espraiava-se pela assembléia, ao passo que as mucamas, os molecotes, as crias em fraldas de camisas, penduravam-se às sacadinhas da escada que deitava para o quintal, pasmados de nada descobrir, mas com os olhares fitos nas trevas que amortalhavam o Ano Velho.
- Boas saídas e melhores entradas! Diziam os pais aos filhos, as irmãs aos irmãos, os parentes e amigos entre si, abraçando-se, beijando-se, saltando de contentamento.
Nas casas em que havia bailes, o mesmo costume coroava a tradição, aos sons da música, ao brilho das serpentinas faiscantes, aos risos que corriam límpidos de uns lábios de rosa.
Isso, porém, que prolongava a festa, mudava completamente no dia primeiro. Da manhã à tarde, as visitas faziam-se, desfilavam numerosos portadores de presentes, sendo de preferência contemplados, nas freguesias, o vigário, os médicos e o fiscal.
As bandas militares tocavam às portas e nos saguões das casa dos generais, dos ministros, das pessoas gradas, dando as boas festas; compensando-lhes a atenção alguma cédula avultada ou peças de dinheiro em ouro.
Enquanto nos armazéns de comestíveis o comércio encaixotava dúzias de garrafas de vinho, acondicionava queijos do reino, presuntos, caixas de figos e ameixas, diversos gêneros destinados aos fregueses do ano; enquanto do convento da Ajuda; riquíssimas bandejas de prata, com a firma do indivíduo presenteado, armada de doces, saíam umas após as outras; era curioso de ver-se o que passava nas ruas, entretendo os abelhudos que comentavam dos sobrados.
Por toda parte encontravam-se negros do ganho, de camisa de algodão por fora da calça arregaçada, conduzindo em cestos um leitão de barriga para cima, amarrado de pés e mãos com o focinho apertado com um barbante grosso, guinchando, acercado de galinhas, patos e marrecos, com a cabeça pendente nas beiradas do cesto e enfeitados nas asas com lacinhos de fita. Para contra-peso, o ganhador não deixava de levar um galo ou um peru na mão livre, também enfeitado de fitas estreitas, geralmente verde e azuis.
Ao presente era de praxe acompanhar um cartão de visita de visita ou uma carta, concebida mais ou menos nestes termos:
"...Boas saídas e melhores entradas lhe desejo.Incluso, encontrará vosmecê um leitãozinho, umas galinhas e um peru, para mais um prato do seu jantar..."
Aqui e além apreciam carregadores de caixotes de vinho ou com caixas de açúcar, criados de libré precedendo escravos enviados com dádivas principescas, tais como colchas da Índia, aparelhos da China, baixelas de prata, cavalos de montaria, fazendo contraste com a crioula ou mulata de casa menos rica, que seguia com um pão-de-ló, um bolo inglês, um pastelão numa salva modesta, coberta com uma gaze cor-de-rosa, com um tope de flores artificiais no centro, atravessado por um cartão ou um escrito.
Na Bahia, além de todas essas ofertas, estava nos hábitos darem-se escravos no dia de Ano Bom. Assim, com um molequinho, uma moleca, um casal de negros novos, obsequiava-se os meninos, as moças ou chefes de família.
Naquela província, onde as cadeirinhas estiveram constantemente em uso como meio de transporte, não causava espanto entrarem por uma casa dois negros de casaca de portinholas com vivos amarelos ou vermelhos, de chapéu oleado com galão, calça curta e um pau ao ombro, acompanhando o portador de uma carta que se lia: 
"...Como uma lembrança de Ano Bom, ofereço-lhe essa parelha de negros de cadeia, pedindo desculpa de não ser cousa suficiente..." 
A isso não se limitavam os presentes. Pessoas havia que ofertavam casas e palácios. O paço de São Cristovão foi um presente de Ano Bom, feito pelo negociante Elias Antonio Lopes a dom João VI, que o vendeu ao Estado, quando se retirou para Portugal.
Considerava-se uma grande falta, um crime, a ausência dos parentes mais chegados no jantar da família. Ninguém relevava essa falta, pois acreditava o povo que o que se fazia no primeiro do ano, se faria o ano inteiro.
Daí se depreende que cada um queria estar nesse dia com os seus, que todos vestiam roupa nova, que se brincava, tocava e cantava, a fim de que o conceito popular se realizasse em sua plenitude pressagiosa.
Os escravos, que nunca foram estranhos às alegrias ou desgraças do nosso lar, ganhavam festas, tinham folga, divertiam-se também.
Por ocasião dos banquetes fidalgos ou dos jantares menos opulentos, ao calor dos brindes, ao alarido da canção:
Como canta o papagaio...Como canta o periquito...
Os convivas entusiasmados proferiam longos discursos, os rapazes recitavam colcheias, as moças tímidas e vergonhosas abaixavam os olhos às palavras "amor", "meu bem", refervendo a animação nas saúdes em honra ao mais velhos, à família reunida.
As visitas oficiais e as de amizade faziam-se imprescindíveis. Havia cortejos no paço, os presepes pernoitavam iluminados, e – boas entradas – boas festas – eram moeda corrente de civilidade entre a população.
Depois de certo período, quando o Brasil fez timbre em imitar o estrangeiro no que ele tem de pior, entendeu que, para parecer-lhe bem, cumpria desquitar-se das usanças tradicionais, quando eles mantém intactas. 
Das nossas festas ninguém mais se lembra; os laços de famílias quase não existem; do dia de Ano-Bom, de grandioso e expansivo que era, nem nos restam vestígios!
E em troca de todo esse passado nos impinge a Europa cromo e folhinhas!"





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