sábado, 19 de setembro de 2009

Uma certa dona Saúcha

O carro era um cadilac . Podia ser um Buick, talvez, já que naquela época, tudo que fosse "rabo de peixe" , a gente chamava de cadilac.

Ele tinha duas cores - verde e branco - e cheio de frisos metálicos. Ela vinha dirigindo, coisa rara lá pelos anos 50 e 60, estacionava e saltava com seu cabelo pretíssimo, sempre preso num coque banana horizontal - diferente dos usados, que eram verticais- ; seus vestidos rodados, suas unhas sempre com esmalte vermelho, seu colar de pérolas, seus " óculos-gatinho" com detalhes em strass e seu sapato alto, de salto e bico finos e, geralmente de verniz colorido. Até hoje quando vejo um sapato de salto, colorido, digo "olha um sapato de dona Saúcha". Sempre, quando criança, sonhei com um.

Assim, ela chegava diariamente ao São Marcos  - Ginásio São Marcos - e seguia pro seu gabinete, com seu visual imponente e de uma sobriedade clássica, ao mesmo tempo.

Vez por outra percorria as salas para ver, ou para dar algum recado e, imediatamente, todos levantávamos à sua presença. Hoje me lembro que fazíamos isso tão naturalmente, com admiração e respeito...

Ela nos ensinou essa elegância!


Elegância, aliás, que imprimia nas atividades escolares. O São Marcos além das aulas, oferecia aprendizados extras, como música, ballet, judô, artes, que ela reunia em apresentações especiais e de final de ano.

Nossa!

As apresentações no Theatro Municipal... Dona Saúcha organizava espetáculos lindos (por) para alunos, pais, parentes, convidados e lotava o teatro. 


Um deles, inesquecível.

Carlos Lacerda, acabara de se eleger governador, do então Estado da Guanabara, e sua filha Cristina, que estudava em uma das turmas do São Marcos, fazia parte do grupo de balé que dançaria o Danúbio Azul, um dos quadros da apresentação. Luzes apagadas, música começando, o cenário com luzes azuis, todas com tutus azuis compridos. Discretamente, entra -com o espetáculo já começado - no seu camarote, o governador. Em questão de segundos o público começou a bater palmas, no escuro. A apresentação teve de parar, as luzes se acenderam e o Municipal, lotado, de pé, explodiu em aplausos. Foi lindíssimo e emocionante. Saiu no jonal, entrou para a história.

A gente também ía à televisão, se apresentar, geralmente com a banda da aula de música, no programa O Mundo das Crianças, do Aérton Perlingeiro, às tardes, na Tv Tupi, na Urca. Íamos e voltávamos no ônibus do colégio. E era diversão garantida, principalmente na volta, já que tudo já tinha passado. Muita música e batucada. Aliás, de ônibus também visitamos as fábricas de gostosuras que tinham na cidade. Era um prêmio que dona Saúcha nos dava. Suspendia as aulas e lá íamos nós...Quantas vezes fomos à Kibon, à fábrica da Coca-Cola?

Além do conhecimento, da brincadeira, dona Saúcha foi pioneira e muitas vezes nos passou noções de cidadania. Quando, por exemplo, nos reuniu no pátio, após o Brasil ganhar a Copa de 62, para cantarmos a música- símbolo; pra vacinação anual, no próprio colégio, contra a polio, em tempo difíceis dessa doença; ou quando chamou Frei Clemente - seu entusiasmo era contagiante! - e d. Maria Lídia (Gomes de Mattos), que despontavam na área de formação pessoal, para nos dar aula.

Era uma mente aberta ao novo.

Certa vez, quando iniciei o ginásio, em meados de 63, achei do alto dos meu 12 anos que queria - quanta ousadia! - modernizar o unifome. Nos ginásios da cidade a saia era de dois ou quatro machos, e nossa saia era toda pregueada. Coisa pra criança, achava (vê se pode). Assim, comecei a falar na turma, mas ninguém tomava a iniciativa. Não desanimei. Um dia cheguei determinada. É hoje! Vou sozinha. Mas afinal, no intervalo da aula, acabou descendo o quarteto - eu, Norma, Márcia e Regina Maria - "você fala!" disseram, e de um fôlego só contei minha idéia e fiz o pedido pra mudança do uniforme. Ouvi a seguinte frase:
- Você pede a sua mãe, que é muito jeitosa, pra fazer croquis dos modelos e me traz aqui, que vou pensar.

Dois dias depois deixava os croquis com a dona Saúcha. Resultado? No ano seguinte o uniforme do ginásio estava mudado. A saia pregueada ficaria só para as meninas do primário e para as do ginasial, a saia passaria a ser a de quatro machos.

São muitas histórias. As do dever de férias, primeira comunhão no Outeiro da Glória, as missas no Dia de São Marcos, a entrega anual de medalhas, as cadernetas, as capas de prova, as aulas de educação física, a bandinha nas aulas de música, a academia de literatura, as guerras de bolinhas na Bic, o diário de lições ,os recados nos cadernos... ah! e dona Saúcha tinha o hábito de ver todos. E deixava bilhetinhos. De parabéns ou "puxões de orelha", pela bagunça, e colava estrelas de incentivo. Quantas! Todos queriam tê-las. Primeiro as vermelhas, depois as prateadas e por último, as douradas.

Co-bi-ça-dís-si-mas!

Com seu tom de voz calmo, baixo, delicado, mas objetivo, uma certa Cecília Lúcia (Bandeira de Melo), que virou Saúcha - apelido tão elegante quanto ela - imprimiu um ritmo preciso, moderno e formou uma constelação de estrelas, colando as suas de papel.

Tenho orgulho de ter sido uma delas.


Dona Saúcha , seu colar de pérolas, seu coque banana, seus óculos-gatinho,
entre alunos - 1957

3 comentários:

  1. Prezada, que riqueza de detalhes, fui ao outro tema, postado em 14/julho/2009 matar as saudades dos tempos de São Marcos, e ao vasculhar encontrei este maravilhoso relato. Foi uma época de ouro em minha vida, amo a D. Saúcha e a tenho com minha segunda mãe, uma pessoa a frente do seu tempo. Parabens pelos relatos. Caso se reunam, se possível me informe sergiosmartins@hotmail.com

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  2. Bom dia, Elizabeth. Depois de algum tempo vim a saber da morte de D. Saúcha. Ver https://www.facebook.com/saomarcoscolegio/

    Abraço e parabéns pela qualidade de suas postagens

    Luiz Roberto Coutinho de Gouvêa

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    Respostas
    1. Oi Luiz Roberto,
      Pois é, nossa querida dona Saúcha se foi. Quando soube pela sua neta, avisei a alguns colegas mais próximos. E nossa ideia de reunirmos ex-alunos e ela acabou não se concretizando. Uma pena. Seja sempre bem-vindo ao blog e passeie pelas histórias cariocas curiosas de todos os tempos.

      Em tempo: quem encontrei lá na Tijuca foi Maria Vilma, professora de declamação.Lembra dela?Falante como sempre, mas, infelizmente esquecida. Não se lembrava mais dos tempos da declamação que ela exuberantemente exerceu.

      Abs

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